Um texto de Francisco José Viegas:
As televisões gostam muito de revoluções. A
revolução, segundo parece, está em marcha no Brasil. O que eu disse de Lula, do
PT e dos metralhas brasileiros defende-me. Dilma Rousseff não me interessa; é
uma personagem secundária de opereta local, arrastada pelos acontecimentos e
por Lula, o homem que «não sabia de nada». Por isso, devia rejubilar e pôr-me à
espreita: vêem como eu tinha razão?, o povo está em armas nas ruas, protesta
contra o PT, contra o aparelho que montou nos últimos dez anos, contra o
desregramento da economia brasileira, contra a ignorância e a oligarquia,
contra a corrupção. Mas, em vez disso, acho que vale a pena explicar.
A era de Collor de Mello, com aquele
personagem trágico PC Farias, não foi nada comparada com corrupção engendrada
pelo governo de Lula, completamente leninista: apoderou-se do aparelho de
Estado, da polícia, das empresas estatais, dos bancos do Estado, fez circular
dinheiro entre partidos, montou negócios entre as grandes corporações e os
interesses do Estado que controla. E tudo isto deu no Mensalão e, agora, no
escândalo da secretária de Lula, o homem que «não sabia de nada» e que tem uma coluna
de opinião no New York Times, cujo correspondente no Brasil (Larry
Rohter) quis expulsar, o que seria inédito desde lá atrás, muito lá atrás, logo
depois do AI5.
Ora, os últimos dez anos foram anos do PT e de
Lula no poder. Um poder tentacular e ambivalente, negociado com os partidos
mais estranhos. Repare-se nos interesses que levam Lula e Dilma a desenhar,
presentemente, com a colaboração do marketing de João Santana, uma grande
coligação que vai do PC do B ao PP, passando pelo PMDB e pelos evangélicos.
Porquê? Bom, para prolongar o poder a todo o custo.
Este clima de imunidade e impunidade feriu
lentamente a sociedade brasileira. Há aquela frase do «rouba mas faz», e há a
fase em que o lulismo, toda a tralha do PT, incluindo Dilma, pode meter-se em
negócios e em experimentalismos sociais, mas é absolvida porque é amiga
dos pobres. Isso pegou durante a reeleição de Lula, pegou durante a eleição de
Dilma, pegou durante o primeiro ano do governo de Dilma, em que a corrida de
ministros se sucedia mês-sim-mês-não, pega de cada vez que a assembleia de
mirones internacionais desata a canonizar Lula. Mas deixa de pegar quando a
inflação aparece ao dobrar da esquina, quando o crescimento zero deixa
de ser uma ameaça para passar a ser a realidade e quando o paraíso na terra
passa a ser o inferno ao alcance da mão.
Ou seja, o caldeirão estava preparado. Bastava
pôr ao lume. Está ao lume, e acrescido de outro problema, que é o da impunidade
da violência e da ilegalidade com protecção política do Planalto, como aconteceu
nos últimos dez anos (assisti a várias campanhas eleitorais no Brasil e recordo
o inflamado Jacques Wagner, na Bahia, por exemplo, fazendo campanha contra a
polícia para agradar «às massas»; resultado, a violência e a criminalidade
dispararam em Salvador, e «as massas» estão sitiadas por uma elite de
criminosos; o PT sabe do assunto). O MST, por exemplo, habituou os brasileiros
aos seus actos de violência ao mesmo tempo que recebia a bênção de Lula e o
dinheiro do Estado e dos seus aparelhos. O PT mais radical ainda não saiu
verdadeiramente da clandestinidade e tem mesmo uma imprensa que defende a
censura, a acção directa e violenta, a perseguição aos adversários – como se
não estivesse no poder. A imprensa afecta ao PT é uma colecção de pérolas sobre
a insurreição violenta – desde a linguagem usada até à substância que ali se
defende.
Por isso, a primeira surpresa: o PT vê a rua
voltar-se contra o PT. Só foi surpresa para alguns que o próprio ministro da
Justiça aparecesse a condenar a polícia de S. Paulo diante da bandidagem. Não
venham com a história da «explosão social». Ela existe, mas não tem nada a ver
com a bandidagem. [Uma amiga dizia-me: «No Rio, tudo acordou como se não fosse
nada.» Pudera: os pobres limparam tudo durante a noite.] Gilberto
Carvalho (ministro da Presidência) disse anteontem que o governo está «a ser
atropelado pela história» e tremeu meio mundo. Porque o PT sempre incentivou
este género de protestos — o PT sempre esteve no poder e na rua ao mesmo tempo,
nos últimos dez anos. E ficou surpreendido porque a rua, hoje, não é do PT – um
partido, aliás, tão ruidoso como minoritário. E o rosto de Dilma,
vestida de fantasia para um drama de segunda ordem, é esse: «Como é possível?
Então a rua não era nossa? Não foi para isso que armámos a CUT, o MST e outros
grupos de companheiros? Não foi para isso que tivemos os melhores do
marketing? Não foi para isso que hostilizámos “as elites” e depositámos a nossa
esperança no povo?» Mas Dilma não percebe. E por isso, quando se tratou de
analisar «a questão das tarifas», Dilma reuniu com Lula, Aloíso Mercadante
(ministro da educação e futuro director de campanha da própria) – e o homem do
marketing, João Santana. Tudo se resolveria com uma contracampanha. Que
está a ser organizada, descansem.
Sim, estes são sinais de insatisfação da
sociedade brasileira. São sobretudo expectativas goradas. Só que houve um
momento em que a guarda avançada do PT acusava todos os protestos de serem
armados pela direita, pela tucanagem, por FHC... Mas acontece que esse
discurso passou momentaneamente – mas vai voltar. E, enquanto não volta, «as
massas» deram sinais de rebelião e de desconfiança radical. Acontece que essa
fase já não pode desculpar-se com o governo de FHC — que aliás desenhou a maior
parte das políticas públicas sustentáveis de redistribuição de riqueza na
sociedade brasileira.
Recordo um dos pontos altos da gigantesca
manifestação pacífica de São Paulo, anteontem: quando as pessoas cantaram
«Dirceu pode esperar, a cadeia é o seu lugar». Isto é muito importante — porque
o que José Dirceu representa, com aquele grupo onde entram José Genoíno, Marcos
Valério, Delúbio Soares, a banda do Mensalão (todos condenados à prisão pelo
Supremo), é o pior do lulismo. Lula sempre foi protegido (pelo PT,
naturalmente; mas também por Sarney, por Maluf, por Calheiros, pelo PMDB, pelas
grandes corporações...). Ele é o que não sabia de nada, o que estava na sala ao
lado mas «não sabia de nada». E que, mesmo diante da condenação do gang do
Mensalão, apareceu, como ele diz, «a defender os companheiros nesta hora
difícil em que estão a ser perseguidos». Não estão a ser perseguidos: foram
efectivamente condenados em tribunal. E toda a gente viu. Mesmo que o seu
aparelho esteja ao serviço de Dilma, que foi, aliás, ministra da Casa Civil de
Lula e que, portanto, não se sabe se «não sabia de nada» do Mensalão e dos
outros casos afastados da cena política por serem «invenção das “elites”».
É isto – além da violência que não comanda –
que o PT não percebe. É por isso que Fernando Haddad, o prefeito petista de São
Paulo, está a ser odiado pelo próprio partido (se bem que o PT aprecie a
desordem de SP, porque pode culpar Alckmin, o governador do PSDB e adversário
de Lula na reeleição).
Ora, o que existe é uma explosão a três
tempos. O protesto mais imediato tem a ver com as tarifas dos
transportes — e foi esse que mais chamou a atenção das televisões e jornais, enquadrado
pelo grupo Passe Livre. [Na verdade, um dos grupos foi lançado por um
partido de esquerda, o PSOL, de Luciana Genro, filha de Tarso Genro,
ex-ministro de Lula e actual governador do Rio Grande do Sul. E, na sua génese,
foi financiado pelo próprio PT.] A sua última reivindicação é tarifa zero
para os transportes, mesmo depois de as principais capitais terem baixado
as tarifas (o que prova a natureza da sua agenda). O problema dos transportes é
dramático num país em que os empregos estão no centro e os salários mínimos
estão na periferia. Essa travessia, nas capitais, chega à centena de
quilómetros. Os transportes urbanos vão entre 1 e 3 reais. Se multiplicarmos 2
reais por 26 dias de trabalho, vezes dois, temos 104 reais com um salário
mínimo de 680 reais. Não é diferente da situação portuguesa, com a diferença de
os transportes, no Brasil, serem muito piores e de estarem sujeitos a todo o
tipo de violência. Mas, ao contrário do que pretendem mostrar as televisões
portuguesas, inflamadas com o desejo de revolução desde que não seja ao pé da
porta, são os pobres os principais prejudicados com essa violência, cujos
detritos têm de limpar no dia seguinte. O que os orquestradores deste protesto
não esperavam é que houvesse uma vaga de fundo que os ultrapassasse — e
houve.
Portanto, há um segundo protesto, e
esse teve início moderado em Brasília, quando as vaias a Dilma surgiram — um
protesto inicial contra a Copa 2014, e que foi adquirindo cada vez mais
notoriedade até chegar a São Paulo, muito mais geral, e que o PT olha como
profundamente hostil, porque levou para a rua «manchas da classe média»,
habitualmente silenciosa (Dilma foi eleita com 56% dos votos, contra os 54% de
Serra — com uma abstenção de 21,5% num país onde o voto é obrigatório, e que
somados aos nulos dá 26,7%) mas devastada pelo anúncio da recessão que chegará
logo depois da Copa. E esse protesto é o que dói mais, porque pode ter um
efeito definitivo na campanha de reeleição, que está a ser preparada por Lula.
Vi, nesses ajuntamentos, um cartaz curioso:
«Não cabem aqui...» Essas razões que «não cabem aqui» podem querer dizer que há
um sector da sociedade brasileira que desperta para o embuste do petismo. E,
pior, são manifestações pacíficas, tranquilas, de pura demonstração de um
cansaço que estava anunciado – e de um desconcerto diante da enormíssima
despesa pública de que a construção dos estádios da Copa (com a sua inevitável
carga de suspeitas de corrupção) é apenas um exemplo. Estas são manifestações
em que o PT é vaiado, em que Lula e Dilma são vaiados (alguém viu na televisão
a manifestação diante da casa de Lula, por exemplo?), em que a CUT é expulsa,
em que o gang do Mensalão é assobiado.
Finalmente, aquilo a que as televisões dão
destaque, à procura de espectáculo: as cenas de bandidagem e de
descontrolo. O PT, mais uma vez em sintonia com a sua tradição, ataca a polícia
e envia grupos profissionais para se associar aos protestos — porque está
encurralado e tem de manter o hábito de dançar com ruído na sua lógica de
selvajaria. As franjas radicais estão lá, em pleno, tentando obter na rua
aquilo que não podem fazer no Congresso, nos tribunais, nas eleições e na vida
de todos os dias. Essas franjas são compostas por todos os «aliados históricos»
do lulismo, desde os «companheiros» das ocupações selvagens até àqueles que
querem impedir investigações do Ministério Público e condenações no Supremo (é
curioso como o PT se tornou racista ao ponto de relembrar, em surdina, a cor do
presidente do Supremo, Joaquim Barbosa, que desmontou o Mensalão e provou a
cumplicidade do Planalto dos tempos de Lula). Essas franjas não só aprovam as
cenas de bandidagem como reclamam a rua do Brasil. Nem que para isso
tenham de «compreender» e de «fornecer uma explicação sociológica» para os
assaltos, violência contra a imprensa, assalto ao Congresso e ao Itamaraty,
etc. Desconsolem-se os que festejam a violência — o PT já se solidarizou com
ela e deu-lhes as boas vindas, se bem que tenha sido recebido com apupos para
já, e felizmente. Mas, fiel aos seus princípios, bem tentou festejar.
Parte do Brasil pode estar a arder. Talvez
seja a agonia do petismo, do lulismo e da «imensa sabedoria» que o dr. Soares
vislumbra em Dilma. Mas, entretanto, vem aí o marketing, e talvez nada fique
por aqui.
1 comentário:
Canonizar Lula, diz Viegas e diz muito bem. Até em Portugal a Univ. de Coimbra concedeu o grau de doutor honoris causa ao perverso Inácio, o que a irá creio marcar ad secula seculorum. Uma pena, de facto, mas as realidades são mesmo assim. E aquela do Obama se sair com o ingenuema de chamar ao Inácio o homem mais popular do mundo? Haja deus!
Lucho Gotícula
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