Ontem só
adormeci lá pelas duas e picos da manhã.
Por
causa da febre dos fenos, por enfado de, num rasgo de tolice, ter ouvido num
noticiário um salvador do povo bolsar as suas habituais inanidades que tanto
nos têm atormentado?
Nem por
sombras.
Acontece
que uma hora antes captara no transístor o pivot a anunciar o programa
que iria ser emitido: "Vozes da lusofonia", de Edgar Canelas.
Bom, pensei eu com os meus botões do pijama, não fará talvez mal dar-me a ouvir
uns minutinhos da emissão...
Em boa,
ainda que tardia, hora o fiz. Porque durante essa hora absolutamente ganha
estive a ouvir, entre o encantamento e a surpresa, um cantor angolano de
excepção. Acompanhado pela Orquestra Sinfónica de Londres, numa iniciativa do
produtor Derek Nakamoto - que o ouvira fortuitamente e, de imediato, suscitado
pela qualidade singular do artista, lhe propusera o ensejo - Waldemar Bastos
apresentou trechos do seu recente trabalho (que já foi considerado
internacionalmente um dos melhores discos do ano) Classics of my soul e,
ainda por cima, teceu justíssimas considerações sobre a música, a arte de
cantar, o seu percurso pessoal no mundo dos concertos, etc.
Como
se sabe (se sente) Portugal tem estado a atravessar uma das fases de maior mediocridade
no capítulo radiofónico. Os programas são duma frouxidão, dum primarismo e
duma auto-complacência que nos deixa siderados. Tudo se vai escoando p'las
vias da bola, da música pimba ou desenxabida (ora pedante ora daquele
romantismo lamecha) e da graçola ou alfacinhista ou matarruana, num
cacharolete que, comparado com a rádio espanhola, nos desconsola, nos
indigna e nos envergonha. E, como os radialistas são todos competentíssimos,
depreende-se que é pecha, talvez, de epidemia societária...
Daí que
aquela hora, acompanhado pela conversa inteligente do entrevistador/realizador
e pela voz poderosa do cantor, a tenha dado como muito bem empregue, como
refrigério merecido e bem fruído de ouvinte que tem andado frequentemente
"a apanhar bonés".
No fim
foi dito que em breve Waldemar Bastos, acompanhado pela Sinfónica da
Gulbenkian, dará um concerto em Lisboa. Creio que fará sentido
- e, com vossa licença, aqui fica o alvitre - ir-se ouvir este
cantor angolano integrado na lusofonia.
Não
perderemos, creio, de forma alguma o nosso tempo.
O abrqs
de fim de semana
Post-Scriptum
- E, sem comentários (que me parecem desnecessários em função da excelência dos
poemas que vos transcrevo no anexo) aqui vos entrego hoje o bloco referente a
António Luís Moita, poeta excelso e alentejano pelo coração e pelas vivências.
ANTÓNIO LUÍS MOITA: Quatro poemas alquímicos
seguidos de um OUTRO doado
à memória
Os poemas que a seguir se dão a lume
pertencem ao livro Cidade sem Tempo, editado pelo A. e distribuído pela
ULMEIRO.
Executado
em 1985 nas oficinas gráficas de Ramos, Afonso & Moita, Lda. dele foram
tirados 800 exemplares, dos quais 100 numerados e assinados por ALM.
Capa a partir de uma pintura de Alves
Martins, arranjo gráfico de Fernando das Neves.
O livro está dividido em três capítulos -
Do Amor; Da Morte; Das pequenas coisas - constituindo 133 páginas de texto.
ALM ofereceu-me um exemplar no dia 24 de
Março de 1990, antes do jantar com que honrávamos os convidados do programa
semanal “Mapa de viagens” por mim realizado
e emitido pela Rádio Portalegre das 22 às 24 horas de sábado.
Na ocasião li, entre outros da autoria de
Cristóvam Pavia, dois poemas dos que aqui se apresentam: “Reencontro: 13/10/68” e
“Adepto”.
Os poemas alquímicos, além das suas leituras
e meditações próprias, reflectem o contacto do A. com Abel Teixeira, “irmão do orvalho” e seu amigo.
ADEPTO
Nunca
morro da morte verdadeira
de
que morrem os homens mais comuns .
Perseguido,
renasço, intemporal,
sem
ter morada certa nem fronteira.
De
Júpiter sou filho – e do mistério.
Alberto
ou Paracelso – quem me fez
sabe
que nenhum túmulo me guarda
e
que do amor perpétuo me acrescento.
Contudo,
o Tempo dói-me. E, se não caibo
na
pedra, a fonte humana me dá luz
(bebi
demais no pó sanguinolento,
residual,
da obra inteira, a vida).
Cumprido
o ouro, louvo simplesmente,
com
ele, o Pai. Olvido-me de mim.
Nome
não tenho. Nem sossêgo. Ardo.
Feiticeiro
não sou, mas aprendiz.
ARIANA
Ao Abel Teixeira
Do
pouco ou nada feito não revelo
qual
o passo que dei ou que vou dar.
Do enxofre e mercúrio digo apenas
que
se mordem, que mútuos se contêm,
que
todo o sal é lágrima de Maio.
Poderei
dizer mais: que o fogo é lento
e húmida
é a via. A seca, não.
(Nunca
o rápido amor me dá contento.
Nem
há cultura fácil, fácil vento.
Qualquer
trigo veloz sabe a traição).
Digo
ainda, da via, que são sete
as águas deste denso e longo mar.
Ao
terceiro degrau já se promete
o
peixe que prateia, a crepitar.
São
porém as sereias. Não cardume.
O
verdadeiro peixe – que é de lume –
a
seu tempo virá, mas devagar.
Primeiro,
há-de toldar-se em nevoeiro
o
velo, vinte vezes (só morrendo
vinte
vezes terríveis se renasce).
Entretanto,
uma aberta: o arco-íris.
Depois,
de novo, a noite, a fermentar-se.
Haverá,
de manhã, menos indício
na
espuma da maré, no barco estreito,
do
que nos olhos puros de quem vê,
ou
antes, adivinha.
- Tu,
que me segues, crê:
No
ovo luz a vinha!
FULCANELLI
Ao microscópio,
gotas de cristal.
Á vista
desarmada, pó vermelho.
Uma
pitada leve, como o sal,
um
fervilhar – e eis prata o que era estanho.
Só
que da mão depende o bem que tenho,
o
gesto firme, próprio, sem o qual
teria
tudo apenas o tamanho
que
tem, antes da luz, a catedral.
Assoprador?
Adepto? Não sei bem…
Sei
que todo me dou, que nada espero,
que
por amor somente transmutei
na
semente mais viva o vil minério.
Prata
quis. Prata fiz. Ouro farei
mordendo
as águas turvas do mistério.
MANSÃO
FILOSOFAL
Erguem-se
os dedos. Crispam-se no todo.
Mas
algo falta para o todo ser.
Algo
que mora num dedal de fogo,
nessa
palavra que não sei dizer
mas
salta certa, célere, no sopro
irreprimível
que de Urano vem
dar
de repente vida nova ao corpo,
ceder
razão ao que razão não tem.
É o
dédalo negro, o labirinto,
a
chave justa para libertar
no
firmamento a névoa do que sinto.
Mas
é também oráculo. O olhar.
O
ver, sem fim, distinto, o indistinto
no
desfazer da pedra tumular.
Nicolau Saião, Homenagem a Fulcanelli, técnica mista sobre cartão (80 x 140 cm)
Reencontro:
13/10/68
À memória de CRISTÓVAM
PAVIA
e de seu Pai
FRANCISCO BUGALHO
- meus amigos.
Quando o comboio surgiu
na curva do caminho
teu pai estava perto. E disse:
Não
queria, meu filho, que viesses
tão
cedo.
Tenho,
porém, aparelhada e pronta
(oh,
desde sempre!) a égua.
E,
sem coleira, o velho cão te aguarda,
fiel
e meigo como um sol de Outono.
Meu
colo tens também à tua espera
e a
força do meu braço, do tamanho
da
noite e do silêncio da tapada.
A
força do meu braço quis descê-la
a
tempo, sobre ti, descê-la quando
imaginaste
um rosto na paisagem
-
rosto que, distraído, se desfez
num
prado alheio ao teu.
Quis,
sobre ti, descer esse meu braço
de
força já não minha forte ainda.
Mas
era tarde para projectar-te
em
ruas mais propícias.
Quis
dá-lo a tua mãe (como tu, só)
mas
já não foi possível.
Quis
entregá-lo a dois ou três amigos,
mas
tinham compromissos
pessoais.
Mesmo
assim não queria que viesses
tão
cedo.
Muita
coisa podia acontecer
(muita
coisa acontece)
como
um súbito barco, uma palavra
-
glicínia, madrugada, madressilva –
para
teu recomeço
e
minha espera
maior.
Aguardo-te,
porém.
E,
comigo, o teu cão, a égua alada,
a
inocente infância dessa fonte
fresquíssima,
da quinta, onde bebemos
a
água
única.
Regressa,
inteiro, à terra iluminada,
nu
de mitos, de pétalas, de pranto
e
das outras humanas falsidades
(como
dizias)
do
mundo.
Entrega-te
e regressa.
Transparente.
No
fundo, desde o fundo, pelo fundo
esmaga-te
em meu peito!
João Garção, Pintura (lápis
bougard e guache sobre cartão, 40 x 65 cm)
Sem comentários:
Enviar um comentário