quarta-feira, 18 de julho de 2012

DOIS POEMAS DE GÉRARD CALANDRE



Chirico, Interior metafísico com biscoitos


NAVEGAÇÃO



1. Quantas vezes
comecei por ali
pela janela entreaberta
cruzada por uma leve penumbra
- Deneb ou outra estrela
da Cassiopeia, ou um planeta
errante
Quantas vezes
sem saber que dizer, sem poder
respirar a valer
inventei ruídos ao longe
pus gente a viajar à beira de caminhos
que nem sei se existem   Quantas vezes
escarneci fiquei sério
e digo isto sem troçar
deixei a mão direita sozinha
acenando entre particípios e conjuntivos
Quantas vezes  quantas vezes
perdi de vista a morte a vida
Quantas vezes
cheio de sono   farto de verbos
peguei em sonhos numa vassoura
fugi assustado, andei de barco
e ao acordar enchi-me duma imperiosa
ternura   num suspiro
e fui pelas ruas bocejando
trocando os pés moderadamente
como se estivesse ligeiramente louco
ou os poemas fossem    apenas simulacros.


2. Agora vou pensar um bocado no “Anjo Guardião
Aparecendo a Maria” da basílica de San Genaro
de Piero de la Francesca, como que por acaso
Uma pintura sem arabescos, aparentemente
sem semelhanças com outra que vi – e no entanto
tão igual! – num museu de Évora durante a minha
primeira viagem a Portugal. Almoçara
num famoso restaurante de Lisboa
Como a cidade estava bela cheia de vento
e a minha bendita gravata de riscas que a
Jeannette me oferecera   devia
fazer um vistão
e eu rapava o prato   miraculosamente
e então a Jeannette disse-me: repara! E eu
olhei
Um senhor alto, de óculos reluzentes
olhei   entre o assado e o doce
Era, esclareceram-me, um famoso escritor
uma pessoa de qualidade, romancista   também
com putices finas pelo meio, um homem
de confiança de Sua Excelência   enfim
antes da fruta, antes do brandy. A Jeannette
dissera-me: repara! E eu olhei, eu
olhei. Vírgula, dois pontos, aspas
traço e sublinhado.

A gravata está pendurada
no trinco de uma porta. Entretanto
como passaram vários meses
já digeri o assado, a sopa, o doce
o charuto que o Pierrot me deu. Doravante
- lembro-me que pensei –
vou passar a comer em modestas tascas
não fumar
mijar   sei lá   se calhar à socapa atrás

dum arbusto.


                     in Vestiges/Vestígios” (Tradução ns)

   Na segunda parte deste poema é perceptível a simpática alusão do A. a um muito conhecido e estimado vulto político, também nas suas horas renomado tradutor e poeta.




  Gérard André Loison Calandre nasceu em 1952, na Bretanha. Viveu vários anos em  Messina, entregue ao professorado e a trabalhos de laboratório, que abandonou após  desastre numa das estradas europeias.
   De formação científica, manteve-se largo tempo relativamente afastado do mundo das letras.
  Autor de “Vestígios”, O levantino – pré-novela e de textos esparsos sobre o seu ramo profissional, debruça-se presentemente sobre “O sentimento de perda em Gérard de Cortanze”(ensaio).
  Visitou Portugal em 92 e 97. Após o falecimento de sua segunda mulher, Jeanne Vaillon Remise,  foi residir para o Canadá francófono.
  Textos seus foram dados a lume por Agulha, TriploV e revistas Bicicleta, Abril em Maio e DiVersos. 

1 comentário:

Anónimo disse...

Belíssimo poeta. Já o conhecia da Abril em Maio e da DiVersos, onde foi incluída uma série de poemas surpreendentes. E ouvi-o em Paris, onde com Jean-Roger Daniels disseram textos de arromba no Bar-galeria Maillet. Um delírio!

Pedro Franco