domingo, 4 de novembro de 2012

Dois textos no DN e duas notas minhas






O primeiro, de João Marcelino:


A discussão que interessa

1- O Governo, apertado pela troika, vai ter de mexer finalmente na dimensão do Estado. Percebe-se então, assim, o desafio para o "refundar" do memorando, que Pedro Passos Coelho lançou a António José Seguro no final da semana passada. São os credores que querem o Governo a passar das palavras aos atos, a deixar-se de propaganda e, até, veja-se a ironia!, a cumprir aquilo que prometeu quando das eleições. É este o significado da "assessoria técnica" agora anunciada.

É preciso dizer ao "melhor Povo do mundo" que se não quer continuar a ser esmagado pelos impostos, ano após ano, e sem resultados que se vejam, cá dentro e lá fora, este é o movimento necessário: adequar o Estado à riqueza que geramos.

Está aberta, portanto, a única discussão política com interesse e significado: que Estado podemos ter? Que Estado queremos que a (frágil) economia (que temos) pague?

Este é mais um favor que devemos agradecer ao FMI e à Europa: que venham dizer-nos o que devemos fazer, como devemos fazer. Caso contrário, já o tínhamos percebido, acontece em todas as dimensões o mesmo que à reforma do mapa autárquico: não se faz. Infelizmente, pôr políticos portugueses a reformar o Estado, que eles - todos! - criaram com tanto esmero, é como pôr um assaltante a organizar a polícia... Ao menos disso o Governo está consciente e merece um "bravo" pela humildade com que aceita mais esta humilhação, a terceira em 35 anos.

2 - Só agora, movido pela necessidade, o Governo descobriu a importância de manter um diálogo aberto com o PS, que hostilizou de forma insensata nos últimos meses, desbaratando o consenso social e político que fazia de Portugal um caso diferente na Europa dos necessitados. Resta saber se pretende mesmo um entendimento (à volta da dimensão do Estado e dos serviços que os impostos podem pagar no âmbito do Estado social) ou se apenas pretende um pretexto para manter a luta política e partidária nos próximos tempos. Neste momento ainda não é possível perceber verdadeiramente qual destas hipóteses é a verdadeira.

E também não é ainda claro o que pretende o PS. Vai aproveitar o pretexto para se desvincular da austeridade que pactuou com a troika ou vai aceitar participar num alargado consenso quanto às funções do Estado para as próximas décadas?

Do que o País precisava, não se tenha qualquer dúvida, é que Governo e PS se entendessem quanto a esta notável e inadiável reforma. Que definissem os limites do Estado social (que, ouvindo-os falar tão bem, até parece às vezes ter sido uma criação dos radicais de esquerda, quando foi, por toda a Europa, uma criação da social-democracia, do socialismo democrático e, até, da democracia cristã. É bom que não se esqueça isso, sobretudo nesta hora em que o sistema precisa de ser reinventado).

O PSD e o CDS-PP estão perante uma necessidade inadiável do País que administram sob tutela estrangeira. O PS foi colocado perante um desafio complexo: como poderá continuar a criticar as sucessivas subidas de impostos se não quiser aceitar mexer verdadeiramente na despesa?

Há ainda uma aflição de fundo (para as pessoas que aqui habitam e foram esmagadas pelos impostos): se estas forças partidárias não forjarem um acordo mínimo, significará isso que um próximo governo poderá voltar a lavrar, como é triste costume, em cima das reformas que agora serão executadas?

Os deputados anteciparam a votação do Orçamento do Estado na generalidade para fugirem aos manifestantes. Pode ter sido uma solução expedita para evitar males maiores, mas fica como demonstração de cobardia política e institucional. Mais uma, depois das tristes celebrações da República, do Presidente a fugir de jovens e dos governantes a saírem por portas do fundo".

Nota: João Marcelino não terá tido conhecimento, mas já no ano passado, conforme fez notar Assunção Esteves aos deputados contestatários, a decisão de pôr o OE à votação antes da paragem para o almoço foi tomada sem que ninguém se opusesse.
O que este ano constituiu a cobardia de alguns era, em 2011, a conveniência de todos. Chama a oposição a isto combate político? Eu chamo a isto enganar os eleitores, negar a condição de deputado.



Quatro pontos da situação

1- O Governo "aceitou" a ajuda do FMI para reformar ou, na terminologia da casa, "refundar" o Estado. Má notícia? Para o Governo, que assim certifica a sua incompetência ou cobardia, sem dúvida. Para o país, nem tanto. Encontramo-nos hoje num processo de empobrecimento acelerado, inevitável e doloroso. Em vez de ficarmos apenas mais pobres, não será desaconselhável que, já agora, nos livremos de algumas das causas estruturais da penúria. Claro que teria sido preferível o exercício excluir a intervenção estrangeira, mas está abundantemente provado que a intervenção indígena nunca chegaria sequer a existir. O recurso a entidades externas demonstra a inutilidade dos senhores no poder; a reacção colérica às entidades externas demonstra a imobilidade dos senhores na oposição, que aceitam tudo, tudo, tudo excepto a mudança. Entregue a si próprio, Portugal é irreformável. Entregue a outros, veremos.

2- Há dias, o Governo era criticado por não cortar na despesa. Hoje, é criticado por preparar cortes na despesa em conluio com o FMI. Há dias, o Governo era criticado por aumentar os impostos. Hoje, é criticado por destruir o Estado dito "social". A divertida inabilidade governativa só é superada pela doçura dos que se lhe opõem, crentes de que as famosas "gorduras" estatais se eliminam com a abolição de meia dúzia de frotas automóveis e de que a caridade universal prescrita na Constituição se obtém mediante o selectivo saque dos "ricos" ou a invocação de energias positivas.

3- Não há dia em que os senhores do PCP e do BE não apareçam a exigir o sacrossanto respeitinho pela Constituição e a alertar para as ameaças a que a Constituição está sujeita. À primeira vista, é respeitável o institucionalismo da extrema-esquerda. À segunda vista, é esquisito que o documento formatador do regime seja defendido pelas forças políticas que o regime repetidamente derrotou. Nos melhores dias, os dois partidos comunistas não ultrapassam os vinte por cento das intenções de voto. Ainda assim, é principalmente essa pequenina minoria que berra em prol de uma observância constitucional que convém à minoria e, como é notório, nem sempre convirá aos restantes.

4- No simpático cerco de quarta-feira ao Parlamento, alguns manifestantes, citados na imprensa, interrogavam-se: onde está o milhão de desempregados? Onde estão os estudantes? Em casa, digo eu, que as dificuldades vigentes nem sempre convencem as respectivas vítimas a incendiar propriedade alheia e a colocar em perigo a integridade física dos deputados que o país em peso elegeu. Uma coisa é remoer a austeridade, outra é combatê-la às marradas contra a parede. Percebe-se que os exemplos dos delinquentes de Madrid, cuja fúria destrói estabelecimentos comerciais e provavelmente empregos, sejam apelativos para quem nunca conquistou o poder nas urnas e sonha consegui-lo nas ruas. Não se percebe que, ainda que fechem o punho ou o estendam ao jeito hitleriano (juro), as forças por detrás da violência à porta de S. Bento se julguem revolucionárias. Caríssimos: as revoluções começam pela contestação do status quo, não pela reacção desesperada à sua queda.

Nota: É fácil falar em incompetência ou cobardia por parte de Passos Coelho. Eu chamar-lhe-ia a competência e o arrojo possíveis num país dominado por máfias que  - como o próprio Alberto Gonçalves acaba por reconhecer mais à frente -  o sufocam, nada permitindo fazer em prol dos portugueses desde há quase dois séculos. Algo que os actualíssimos e sempre citados testemunhos de Eça e de Ramalho (Ortigão) atestam até ao desespero dos próprios.

Longe de constituir uma submissão ao "estrangeiro", a decisão do primeiro-ministro e da sua equipa revela, por isso, a meu ver, uma visão política lúcida bem como uma coragem e uma determinação raras contra aqueles que pretendem, da esquerda à direita, que Portugal continue a existir para os servir e lhes afagar as vaidades matarruanas de cacique de aldeia europeia.

1 comentário:

Anónimo disse...

Absolutamente de acordo com Marcelino e Gonçalves e absolutamente de acordo com os pequenos mas grandes, lúcidos comentários em adenda de Gonsalo, a quem por maldade costumo chamar João mas que sei ser e muito portuguêsmente é José...

Ricardo Mochila de Abreu