sexta-feira, 27 de abril de 2012

Da surdez no clítoris -1



(foto obtida aqui)

Tenho andado a publicar aos poucos, no Fiel Inimigo, um texto que, já agora, deixarei, também aos poucos por aqui. Esta é a primeira das cinco partes que o constituirão.



Caríssimo Carmo da Rosa:

As vicissitudes da existência não me permitiram acrescentar mais nada ao único comentário que fiz a este seu post, no qual tecia algumas considerações a respeito deste outro, do Rio d´Oiro, que referenciava, por sua vez, um texto publicado por Pedro Picoito no Cachimbo de Magritte. Fiquei com a impressão, aliás, de ter sido muito pouco claro para si, porque reparei que, logo a seguir, respondeu a uma observação do Godot sobre o que este considerava —e muito bem— o essencial do que eu escrevera (obrigado, Godot, pelo apreço) dizendo que não me dera troco porque não percebera a que propósito vinha isso da excisão do clítoris. Coisa que me pareceu estranha, da sua parte, tanto mais que estou habituado a que procure, como poucos, esclarecer os assuntos que se lhe afigurem nebulosos, e que, por tal, mais me aguçou a vontade de repescar o assunto.

Ora tendo tido hoje maior disponibilidade para me achar “mais pachorrento” (parafraseando o velho Elmano Sadino), dispus-me a despachar o assunto. Só que, como se sabe, as palavras são como as cerejas e tal, e o que era na intenção para meia dúzia de linhas, por muito que eu me esforçasse e tressuasse em contrário, transformou-se numa montanha delas. Achei melhor, assim, publicar o que escrevi em três partes não só pelos danos que o computador causa à visão como também, confesso, porque me faltam para aí dois parágrafos, o jogo do Sporting já começou e eu estou muito longe de ser perfeito. Aqui fica, portanto, a primeira parte da minha resposta.

CdR:

Aumentar intencionalmente a possibilidade de vir gerar um ser humano privado da totalidade dos sentidos de que a espécie desfruta, argumentando com os eventuais limites educacionais que a limitação sensorial impôs a quem o pretende fazer, por querer ter, à viva força, um filho: não haverá muitos exemplos de tão grande monstruosidade de carácter, travestida da mais altruísta das motivações. Nem é difícil detectar nisto o mesmo princípio —teórico e prático— fundante das grandes ditaduras que a humanidade conheceu.

Princípio, aliás, que, de igual modo, serve de justificação à excisão do clítoris, travestida de medida de sanidade religiosa. Trata-se somente de inverter o conhecido “Se não podes com eles, junta-te a eles” num “Se não podes com elas, tira-lhes a pila — que, tirando-lhes o prazer, tiras-lhes o apetite para cuja satisfação tu, sozinho, não venhas, eventualmente, a ser suficiente, e assim terás c… vagina sem concorrência”. Apresente-se o apetite sexual da mulher como devassidão que contraria os preceitos de um Transcendente legislador e punidor e a coisa ganha então uma solidez quase indestrutível. Considerar a possibilidade da sexualidade humana possuir outros contornos e dimensões para além do apreensível e, eventualmente, suportável pelos que determinam a excisão clitoriana (incluindo a bissexualidade feminina), é algo que lhes é apavorante, na medida em que põe em dúvida a sua auto-compreensão.

A razão pela qual, porém, não é feito o paralelo entre o caso relatado e a mutilação genital feminina assenta em dois factores:

- Primeiramente, por a sexualidade se manter no topten das preocupações das sociedades ocidentais. E isto porque, por um lado, durante milhares de anos a consideração do que ela é ou possa constituir tem vindo a ser impedida por motivos semelhantes àqueles que acabei de referir, gerando confusões e a correspondente existência de elementos que nem sempre ajudam a uma visão mais clara e objectiva sobre o sexo e a sua vivência —antes, por vezes, a turvam ou impedem. Em consequência do que, por outro, a sexualidade, em especial a que respeita à do sexo feminino, em conjugação com a afirmação do feminismo, nos seus mais lúcidos e ilúcidos cambiantes, a torna num ponto da maior sensibilidade no que concerne às liberdades.

- Depois, porque a excisão do clítoris é perspectivada como acto de barbarismo, próprio de culturas primitivas, repressivas, que se firmam no obscurantismo das religiões. Enquanto que o casamento homossexual e o direito a educar uma criança dentro dele —por custódia parental, adopção ou geração laboratorial— é entendido como libertação de tabus e combate à repressão do “sistema”, em prol do aparecimento de uma Humanidade nova.

E foi precisamente neste ponto que se originaram os mal-entendidos presentes na caixa de comentários, das quais o Godot (obrigado pelo apreço!) se apercebeu muito bem, ao situar a questão da excisão do clítoris como o essencial da minha resposta, bem como a ligação que ela tem com a esquerda.

Cito, de novo,  um dos grandes vultos da cultura portuguesa do século XX, completamente esquecido após a sua morte, quase trinta anos atrás, com quase toda a obra por editar, e de quem eu (nessa altura um puto) tive o enorme privilégio de ser amigo, Manuel Grangeio Crespo, num livro que publicou pouco antes das primeiras eleições legislativas pós-25 de Abril: “Revolução Cultural é um pleonasmo: não há outra”. Com efeito, toda a revolução assenta na necessidade de se estar, de se viver de outro modo, mesmo que essa necessidade se apresente, de início, com contornos de menor precisão. O que não tiver tal necessidade por fundamento não passa de um mero golpe de Estado.

Ora a esquerda aponta, desde o seu início, para uma nova cultura, a cultura de uma Humanidade dos Amanhãs que Cantam, proveniente da racionalização da posse e utilização dos meios de produção assim como do consumo dos bens produzidos. A viabilidade e a necessidade dessa cultura baseiam-se, contudo, em princípios insuficientemente demonstrados, mas simpáticos para as tendências sociais dos tempos em que os formularam, ou até em meros postulados (para quem não saiba, figura da Lógica que designa algo não demonstrável, mas que terá que se supor verdadeiro para que todo um conjunto teórico possa ganhar sentido). Todos eles, como não poderia deixar de ser, intrinsecamente relacionados com o ensino e a pedagogia. Vejamos, mais que abreviadamente, aqueles que foram e continuam a ser determinantes, na respectiva sequência histórico-cultural.

(...)

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