domingo, 29 de abril de 2012

Um pouco de paraíso (1)


  

Loja, contra-loja e armazém, de Carlos Garcia de Castro

O autor deste livro original – poeta e prosador doublé de professor que também foi radialista nos seus tempos de vilegiatura açoriana (durante 10 meses manteve na Rádio Angra o programa “Pensamento e Poesia”) e com tudo isto amigo de Manuel d’Assumpção, interlocutor de Régio, Manuel Inácio Pestana, Jacinto do Prado Coelho, João Rui de Souza, Tóssan e outros mais de que destacaríamos os professores Firmino Crespo e Manuel Duque Vieira - dá-nos no tomo um registo que vai além do simples memorialismo para se vazar claramente nas evocações comovidas de uma época e de uma cidade (região incluída) que têm a ver com a emoção emanada da escrita e seus múltiplos lugares de indagação do universo.
  
O título não é simbólico, certifica uma realidade próxima a que os tempos há pouco deram fim: o encerramento da conhecida e conceituada Loja Hermínio Castro, entreposto onde se cruzaram durante décadas, nos tempos duma Portalegre compósita com seus tons de lenda e de encantamento popular, o rico e o pobre, o remediado e o assim-assim, o urbano e o serrenho das terras em volta de São Mamede, ainda hoje um dos rincões mais isolados do Alentejo, alto meandro de vivências e de estórias que, aqui se deixa dito, o autor de “Davam grandes passeios ao domingo…” conferiu nos seus caminhares de colecionador fervoroso.
    
A loja, neste volume onde a prosa é adequadamente sulcada por poemas extraídos de vários livros anteriores (um deles, o excelente “Fora de portas” tive o gosto e a honra de o prefaciar e apresentar no Brasil em 2009 - São Paulo, Editorial Escrituras) é o elemento à roda do qual se encenam as reflexões e os factos relembrados. Não está ali como pretexto mas entidade viva. Sendo lugar onde se juntaram existências e figuras, foi nela que o autor entreviu experiências profundas de convivência e sentiu ritmos que o qualificaram como homem e como escritor.

E sendo claramente o livro de um poeta que evoca, pois como poeta e de alta qualidade ele se cifra aos nossos olhos, é também um livro de profunda rememoração de anos e de personagens doravante fixados num perfil exacto, sensível e inteiramente significativo.






Eis um dos poemas inseridos no livro:

Domingo, depois de almoço,
convictos, os funcionários,
que ao lastro da semana em liberdade
só raramente jantam com as famílias
(picar nos tascos desenrasca mais)
vão de automóvel para Castelo de Vide,
perpassam por Marvão sem nada à volta,
conversam na Portagem: – Vamos embora…
ou raspam-se para Valência, à gasolina.
– Então não vamos dar uma voltinha?
Ao sol de Março, em paz, que é luzidio,
sai-se de casa após mais alguns restos
de aconchegadas discussões diárias,
dum lapso de virtude, uma estalada (…)
– É assim mesmo, para saberes quem manda!
– Hoje é domingo, vamos jantar fora.
Por isso é que elas passam esparramadas,
sornas, algumas, a olhar para os lados
por trás dos vidros de automóveis limpos
que os maridos já lavaram,
depois da praça, Fonte do Açude.
Vejo-os passar e penso, deslizante,
como os orgasmos semanais da posse
de madrugada aos sábados confirmam
nestes lugares os meus irmãos da espécie.
Um filtro de amor, altivo,
sustenta equilibrado estas poupanças
que almoçam frango e febras no churrasco.
Vêem-se sempre passear à tarde
edificantes automóveis lestos
que em toda a parte, de semana, amargos,
se adoçam conformados aos domingos.
 (…) Enquanto, porém, mais outros,
também independentes mas pacíficos,
fundamentais, de gozo inda maior,
municipais se ficam com cervejas
fumando e resolvendo nos Cafés

os problemas do trânsito.

in Loja, contra-loja e armazém, Edições Colibri, Lisboa, Novembro de 2011

(Nota – Os textos de ns não seguem nunca os preceitos do Acordo Ortográfico)

1 comentário:

Anónimo disse...

Vou comprar o livro, o artigo é sugestivo e deu-me vontade de ler tudo. Já tinha lido outro livro de CGCastro, gostei e vou insistir.

Isabel Roque