segunda-feira, 23 de abril de 2012

ALGUNS POETAS BRASILEIROS (1)




C. Ronald ou os fogos da noite

  Para iniciar esta secção - dada a lume nestes tempos curiosos (surpreendentes?) em que poetinhas d’ aquém e d’além mar por obra e graça de “fazedores administrativos” são postos numa epígrafe de talento que de facto não merecem e só tem o intuito da mera propaganda para escarafunchar cabeças – nada melhor que a voz de um verdadeiro poeta, um poeta sem complacências e rodriguinhos de escrita e de que a Terra de Santa Cruz se pode e deve orgulhar ser dela e viver nela.
  Com simplicidade, mas com aquela atitude varonil e digna dos altos talentos, Carlos Ronald Schmidt vem de há décadas sustentando nas mãos o fogo da poesia, que é tão natural nele como um objecto familiar e que nos garante a todos na realidade quotidiana das melhores horas e dos melhores momentos.
 Aqui deixo quatro poemas que seleccionei da sua vasta Obra.






O GAROTO STRAVINSKY

Lendo Carl Spitteler numa primavera horrível.
Não é possível ser grande
com tamanha tagarelice.
Stravinsky (o certo) descobriu isso
despindo-se (noutra). Passa a língua nas notas.
Dia maravilhoso nesse bar de praia e dizer:
estou em falta contigo, "a tragédia
não tem nada a haver com a sujeira que
deixa". Uma volta nos arrabaldes (lavam as
máquinas matricidas) póstumos entre colunas
gregas. Ah, nunca, antes
de estremecer no horário o ano vindouro com
novela numa TV idiota.
E parturientes de acéfalos
já desligados da casca. Ora!
Igor sustenta nosso futuro. Por aqui, tudo bem. Então discutem sem
definição alguma, encolhidos na alcova. Especialistas de
cemitério tampouco vi. Claro, somente coveiros,
mas estes nunca levaram a sério uma cova
e tampouco a própria.

  (in Como Pesa!, 1993)


Eis a porta que range com aquele que entra:
domínio da incerteza para mais de um corpo
e o silêncio desfeito. A terra depois disto
e o tamanho inexato daquele que a tenta

como parente estranho que nem era homem
entregue ao acaso com a visão atiçada
no acúmulo de cartas quando pesa o nada
na permanência inútil e no lugar dos nomes.

Mãos em coisas pequenas só alargam a morte
no que consomem do outro. Mas o verbo firma-se
em cada grito de antes sendo ainda mais forte.

Ai, meus Senhores, funde-se o pressentimento.
Não sois nada, nem há folha fora dessa bíblia
que não seja virada e lida cada noite...

(in Gemônias, 1982)


NA CANTINA DO BOSQUE

Recebendo o presente dos amigos, começo
uma idade nova sem mudar os hábitos.
Eu, animal ainda não notado na natureza.
Pronunciem um nome que a identidade se apresenta.
Não é um local apropriado para a alma
a realidade que os adultos inventam.

Qualquer lugar deste país, embrutece.
As aves choram o vermelho da terra esfolada.
Ah, regato perfeito, a voz humana
só é percebida depois de perdidas as palavras.
A sordidez é toda a História e ali
qualquer lembrança pode ser rival dos sentidos.

De certo há muita coisa a nos integrar.
Uma bela italiana a nos servir.
A alma rústica não sabe o que é pensar
antes que nos roubem, rápido, sua essência.
No cardápio o avesso foi escrito por alguém:
“Temos que comer o que nos é dado olhar”.

(in A Cadeira de Édipo, 1993)


PARA ESTAR NA PAISAGEM

Assim que entro, a casa estabelece as regras,
o apoio da terra, as mãos como duas naturezas
juntas e algo que não fui quando chego à cozinha:
algoz e vítima, alimento e gosto, amor e ódio
sobre o mesmo fogo. Tu estavas distante
dessa história, iluminada e nua. Débil eco
para quem precisa do encanto, das coisas antigas
e das novas. Ainda uma vez mais os sonhos tentam
o existido com o que fica dos mortos. O hábito
com que provo o tempo nessa noite de chuva.
Acima de nós, beleza e verdade confundem
a liturgia das raízes, o manancial dos enigmas
a graduar o acaso por tudo que tivemos juntos
entre frutos e flores.

(in As coisas simples, 1986) 



1 comentário:

Anónimo disse...

Gratamente surpreendida por este poeta que não conhecia. Isto diz que as relações entre os dois países nâo estão tão bem como alguns tentam fazer crer, há muita coisa desconhecido pelo que se nota.

Isabel D.