Dizia Fernando Pessoa:
Entre
as várias superstições verbais de que se alimenta a pseudo-inteligência da
nossa época, a mais vulgarmente usada é a da "opinião pública". E,
como acontece com todas as superstições que conseguem deveras enraizar-se mas
que não conseguem tornar-se nunca lúcidas, este critério instintivo respeitador
da opinião pública em palavras (porque sente que há por detrás da frase uma
realidade), mas pouco respeitador dela em actos (porque não sabe
definitivamente que realidade é essa), é ao mesmo tempo o esteio e o vício das
sociedades modernas. (...)
Todos
nós sentimos, qualquer que seja a nossa política que, em resultado, toda a
política, para que não seja mais do que um oportunismo de egoístas, tem de se
conformar com a "opinião pública", com a pressão insistente de uma
opinião geral. Todos temos a intuição, natural ou adquirida, de que uma nação
vale o que vale a sua "opinião pública"; porque, como essência de uma
política estável e fecunda, consiste na sua conformação com a opinião pública,
pressupõe-se, na nação em que tal política é possível, um estado da opinião
pública que persistentemente compila os políticos, os governantes, sob pena de
deixarem de o ser, a conformar-se com as suas imposições. (...)
O
que precisamos, portanto, de determinar para que devidamente nos orientemos no
assunto, é, primeiro, que espécie de cousa é essa "opinião pública",
com a qual uma política fecunda tem que se conformar, se essa "opinião
pública" na verdade coincide com a "opinião das maiorias"; se
essa "opinião pública" (...) pode ser manifestada pelo sufrágio; e, segundo,
em que princípio, em que regras, assenta, por que processos se produz, essa
"conformação" da acção dos governantes com a "opinião
pública", qual a maneira por que na verdade a interpretam ou servem, e não
apenas dizem servi-la e interpretá-la.
in A Opinião
Pública, Editorial Nova Ática
Diz, por sua vez, João César das Neves, no DN:
O
fascínio das redes
Ultimamente,
surgiu no nosso debate político-cultural um novo protagonista: as redes
sociais. Com frequência se ouve citar o que elas pensam sobre pessoas e
assuntos. Em geral, pensam mal. É interessante debruçar-nos sobre a razão da
sua influência e credibilidade.
Grande
parte do prestígio vem sem dúvida da novidade e fascínio tecnológico. Facebook
e afins são criações recentes e brilhantes que, como todas, prometem mudar o
mundo. Depois o mundo acaba muito parecido ao que era, e os mesmos que
apregoaram a revolução vêm repetir desanimados que anda tudo sempre na mesma. A
verdade é que o avanço nem foi drástico nem vácuo. As coisas vão melhorando e o
progresso é uma evidência, embora o essencial permaneça.
Mas a
especial reverência que por isso se concede à opinião das redes sociais não faz
sentido. O meio tecnológico pode ser sofisticado, mas quem o usa é o mesmo tipo
que era antes. A qualidade da análise e a profundidade das considerações não
melhoram por se passar do pombo-correio ao telégrafo ou do telefone à Internet.
Aliás, a haver algum movimento, é negativo, pois quando a comunicação era cara
e difícil as pessoas tinham mais cuidado com o que diziam. Naturalmente a baixa
do custo da informação beneficiou sobretudo o disparate, de menor
produtividade.
Outra
razão porque se admira as redes sociais é, alegadamente, por através delas
falar directamente a voz do povo. Nos jornais e televisões temos a opinião de
políticos, intelectuais, jornalistas e comentadores, mas nas redes é a própria
população que se exprime. Esta é uma ânsia de milénios, com democracias e
ditaduras procurando saber o que realmente sente a opinião pública. Os métodos
utilizados para chegar a esse desiderato foram múltiplos, mas temos de dizer
que este é um dos mais fracos. Primeiro porque, precisamente devido à
sofisticação tecnológica, não se pode dizer que as redes sociais sejam um
instrumento privilegiado dos pobres. Pelo contrário, é uma actividade típica de
ociosos tecnicamente refinados, porque as pessoas ocupadas andam envolvidas na
verdadeira vida social e os cidadãos comuns, mesmo quando os usam, não sabem
explorar as possibilidades desses programas, ficando-se pelo trivial.
Talvez o
aspecto mais curioso seja o fascínio que tantos sentem pelo poder desses
mecanismos, invocando como prova definitiva as manifestações espontâneas
promovidas através das novas tecnologias. Cada vez que surge um evento, das
reacções ao atentado de 11 de Março de 2004 em Espanha aos recentes protestos
de 15 de Setembro por cá, há quem venha garantir que tais fenómenos mostram um
novo poder. Apesar de serem coisas que, para não recuarmos mais, Marat e
Desmoulins conseguiam sem dificuldade usando os velhinhos panfletos da
Revolução Francesa. A técnica melhora, mas o essencial permanece.
A última
machadada no mito das redes sociais vem do facto de elas só conseguirem
realmente marcar a actualidade quando jornais, rádios e televisões lhes dão
destaque, o que aliás acontece muito menos do que a jornalistas e comentadores.
Deste modo, elas estão na mesma posição que todos os outros. Pior ainda, como
se pode determinar o que pensa uma rede? Se elas fossem realmente a voz do
povo, então comunicariam uma cacafonia de miríades de opiniões. E é
precisamente isso que se verifica. Deste modo, quando a comunicação social fala
da "opinião das redes sociais", está realmente a criar uma ficção,
confundindo uma parte com o todo. Pior ainda: como ninguém dá a cara pelo que é
dito, no parecer anónimo domina a irresponsabilidade e a atoarda. Não admira
que nunca se ouça as supostas redes sociais dizerem coisas ponderadas, serenas,
construtivas.
As redes
sociais são um instrumento maravilhoso. Passadas as tolices inevitáveis da euforia
inicial, serão tão úteis como o correio, o telefone, a imprensa ou os clubes.
No entanto, para isso é preciso que vigore nelas o mesmo critério de verdade e
bem da vida comum. Uma opinião não é atendível por ser tecnológica, mediática
ou popular, mas justa e válida.
1 comentário:
claro as redes sociais só servem para as pessoas dizerem coisas das suas vidinhas privadas, não servem para as pessoas darem opinião sobre os assuntos sérios, até porque, como se sabe, o povo não sabe pensar, não tem direito a opinião. Além de que as pessoas que publicam opiniões nas redes sociais são ociosos, não são como o JCN que publica opiniões a troco de dinheiro.
Apreciei a subtileza do post ao juntar o pensamento do Fernando Pessoa ao do JCN... mostra bem o abismo entre os dois...
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