quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

"Incongruências"




(imagem obtida aqui)



Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão." Vendo o que se diz sobre a crise nota-se enorme falta de lógica e coerência. Isto é normal em tempos assim. Aliás o estranho e precioso em Portugal é que, por enquanto, as discussões, apesar de vociferantes, são pacíficas e a economia vai ajustando. Mas a paz e os progressos não impedem os disparates.

Para compreender os erros comecemos numa das poucas afirmações consensuais: o ensino obrigatório deve ser gratuito. Uma pseudo-ameaça a este princípio suscitou há pouco os maiores sobressaltos. Mas logo a seguir ouvimos os protestos das escolas e dos professores contra a redução dos seus gastos. Afinal a educação gratuita fica muito cara. Quem a paga então?

Dizer que deve ser o Estado é tolice, pois todo o dinheiro que ele gasta sai do nosso bolso. Só que os mesmos que querem educação gratuita e manutenção dos gastos das escolas também protestam contra a subida dos impostos. Assim se completa a incongruência. Como as coisas gratuitas e caras não se limitam à educação, a coisa fica mesmo grave. Pensões e apoios, polícia e tribunais, saúde e energia, embaixadas e militares, estradas e esgotos, entre tantos outros, constituem pesadíssimos encargos. E falar de pagamentos dos utentes, das portagens às taxas moderadoras, implica sempre novos protestos ruidosos. Podem ser compreensíveis, mas não são coerentes, violando as leis da aritmética.

Muitos julgam escapar à falácia apelando a mitos. Um dos mais populares, que o Governo também divulga, é cortar as "gorduras" do Estado. Os opositores usam uma variante da mesma ideia, falando de carros e gabinetes ministeriais, erros e corrupções administrativos. É verdade que existem muitos desperdícios, vícios, exageros e entorses na máquina pública. Mas um problema deste tamanho não se soluciona só com dieta. É precisa cirurgia estrutural. Devemos manter o essencial, na educação, saúde, estado social, etc., mas a aritmética exige que tudo seja alinhado com os impostos que podemos suportar. Recusar a mudança é perigosa ilusão.

Outro mito comum é achar que os ricos pagam a crise. Claro que quem mais tem mais deve pagar. Só que, não só não temos ricos suficientes, mas se abusarmos desse expediente quem beneficia é a Espanha e Inglaterra, para onde irão os nossos ricos, aumentando a nossa miséria. Também as empresas não podem ser sobrecarregadas de tributação se quisermos criar emprego e crescimento. Mais uma vez a lógica impõe-se. A verdade é que só cá estamos nós, e querer serviços gratuitos, despesas altas e impostos baixos não é possível. A não ser que alguém nos empreste.

Esta última ilusão é aquela que hoje nos custa couro e cabelo. A crise resultou directamente da acumulação de quinze anos de dívida externa. Aqui surge uma outra incongruência, quando descarregamos os nervos, não sobre os culpados, mas precisamente naqueles que nos querem ajudar.

É bom lembrar que Passos Coelho e Vítor Gaspar não geraram a doença, mas tentam curá-la. O mesmo se diga da troika. Só conseguimos o nível de vida dos últimos anos porque os alemães e outros europeus nos emprestaram as suas economias. A dívida externa bruta do País, incluindo Estado e privados, atingiu 386 mil milhões de euros em Junho. É isto a crise. Os credores não querem que saldemos essa dívida, mas apenas que demos garantias de conseguir ir pagando os juros. Foi esse medo que nos fechou os mercados em 2010 e criou a crise.

Ficar zangado com quem nos ajudou é estranho. Mais estranha é a continuação. A recuperação portuguesa interessa-nos a nós tanto quanto aos credores, que perderiam tudo se falíssemos. Por isso, em resposta às nossas dificuldades, eles decidiram emprestar-nos mais 78 mil milhões de euros, impondo em troca que sigamos uma cura exigente dos desequilíbrios. Estas condições são muito melhores que a generalidade dos países gastadores tiveram ao longo dos séculos. Face a isto fará sentido insultar a troika? São concebíveis alternativas melhores? Podemos ralhar, mas não temos razão.

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