domingo, 10 de fevereiro de 2013

Três, a conta que deus fez (dito popular)



(imagem recolhida aqui)


   Pela mão de Camilo Prado, através da sua Editora Nephelibata,  foram dadas ao grande público brasileiro e, por extensão, a todos os leitores da língua portuguesa, os livros Os fungos de Yuggoth, de H.P.Lovecraft, e Vestígios, de Gérard Calandre.

   A expressão pela mão tem inteiro cabimento – pois as edições da Nephelibata, que se impõem pela sua qualidade material, são executadas artesanalmente pelas mãos do editor com o concurso adequadíssimo das mãos de sua mulher. Mais do que trabalho aprimorado será de se dizer trabalho de quem ama os livros e os faz com desvelos de amorosos por extenso.

   Não é de estranhar pois que todas as edições já postas em terreiro possuam a bela estrutura (até no papel!) que faz jus à frase consabida de Éluard que, em frente de um escorço de Picasso, que mais tarde o veria numa bela edição de Albert Skira, a disse com emoção: “Como eu gostaria de poder fazer os meus livros com as minhas mãos!”.

   O empreendimento a que Camilo meteu ombros justifica plenamente, pelos resultados - já de concepção gráfica já de acabamento, diria mesmo de feitura total – que epigrafemos da forma mais alta estes livros que se certificam como objectos excelentes da arte de editar.

   Finalmente, mediante os bons ofícios de Annie Launay e das Éditions du Parc, vai também sair a público o tomo bilingue de Jules Morot, Le mardis gras, de que tive o gosto de assegurar a versão em português (Terça-feira gorda).

   Em anexo, para que as possam ver, estão imagens das capas das obras referidas. 
     
    A seguir  dois poemas de cada um dos autores em epígrafe:
         



   

                       

VENTOS ESTELARES
 
 Sobretudo no Outono, a essa hora
 Em que tombam as sombras do entardecer
 Os ventos estelares derramam-se
 Pelas ruas mais altas e desertas
 Onde assoma a luz fagueira de algum cálido aposento.

 As folhas secas agitam-se em estranhos redemoinhos,
 O fumo das chaminés enrola-se com etérea graça
 Atento às geometrias do espaço exterior
 Enquanto Fomalhout palpita entre as brumas do Sul.

É a hora em que o poetas lunáticos conhecem
Que fungos brotam em Yuggoth,  que perfumes
E matizes de flores enchem os campos de Nithon,
Que nenhum jardim terrestre pode ter.
  
Mas, por cada sonho que esses ventos ofertam
Doze dos nossos nos roubam!


H. P. Lovecraft
  

A JANELA

Era uma casa velha, com estranhas alas tão emaranhadas
Que ninguém podia dizer que lhes conhecia bem a disposição,
E num quarto pequeno algures nas suas traseiras
Havia uma singular janela entaipada com pedra antiga.

A esse lugar, numa infância atormentada pelos sonhos,
Costumava  ir sózinho, quando reinava a noite negra e vaga.
E destroçava as teias-de-aranha sem qualquer  ponta de medo
Sentindo-me,  p’lo contrário,   cada vez mais maravilhado.

Mais tarde  num certo dia  levei até lá uns pedreiros
P’ra descobrir que paisagem os meus antepassados
Haviam tentado encobrir,
Mas quando perfuraram a pedra, impetuosamente entrou
Uma lufada de ar soprada p’lo ignoto vazio  do outro lado.

Fugiram a sete-pés... Eu assomei-me  - e encontrei um por um
Todos os mundos selvagens que os sonhos me haviam mostrado.







NOTÍCIA

Ao declinar da tarde chego à cabana velha
de muitas gerações. O silencio deixa-me respirar.
As paredes ainda são as mesmas. Grandes manchas
de humidade, a luz de astros distantes, a presença
de pássaros desconhecidos. Os meus pensamentos que
iniciam a ronda das sombras. Era um dia era uma hora
propícia de repousos, de vozes como antigamente.
Coisas construídas e eu estou aqui
ladrar de cães entre as árvores. Eu vejo
mais do que a luz, as linhas leves dos montes.
Desce neles o perfil divino da terra molhada.
As estações na ombreira da porta Raramente lembramos
os lugares como um livro que se abre Horizonte já
inacessível.
O primo pequeno o calção sujo de terra Fotografias
pacientemente dispostas sobre a mesa de madeira
Sem detença me abandono Veredas perfumadas flores voando
pulsa lento o sangue junto ao esqueleto

Neste chão vos imagino calados como outrora
vida sem desenlace o fogo que se desenrola
amei em vós o fulgor do coaxar das rãs
o alfabeto sensível do que a escuridão me dizia.

Devagar. Deus dá-se por satisfeito espreguiça-se
no sereno entardecer. Devagar digo de mim para mim
Longa criatura arfando na terra nas horas que passam.

Abro a porta, aguardo a quietude abro a saída
uma chuva mais frágil entre duas águas que se reúnem.


Gérard Calandre


JITTERBUG


Perdi uma das casas
da minha infância

Pombos por sobre as árvores
onde é agora um hipermercado

Na rádio, Hillary St.Georges
entoa uma ária do  “Rigolleto”.

O meu pai morreu com um livro de Tchekov
sobre a mesa-de-cabeceira
onde um lenço e uma tesoura de unhas
aguardavam o último arranco

O meu tio, que me ensinou a espirrar
- fazia-o sem ruído, como um velho soldado –
morreu também
e a prima que me acalentara as manhãs de domingo
foi também desta para melhor. E agora

Olho ao longe o pequeno subúrbio
a minha casa antiga está entre outras
Será a que inicia a rua frente à estrada
a segunda, a terceira? Não creio que seja a de portas
azuis, com um pezinho a condizer, ou aqueloutra
um pouco fanada, com uma motocicleta junto ao muro.

A mãe, pobre dela, ausentou-se
vive agora num bairro periférico
e a sua memória flutua
“Filho, lembras-te da figueira?”
“Meu rapaz, recordas-te do perdigueiro castanho?”

E é só a isto que chega
enovelando rostos, quando muito uma expressão
das vizinhas que iam ao baile.

Por isso
sou já um pouco como aqueles velhotes relampados
de sapato engraxado, estralejante
comendo bolos-de-rei com um cafézinho
na “roulotte” de comes-e-bebes
perto do andar que hoje habito. Tenho já
como eles

a pupila funda
a garganta presa
o braço anguloso
de quem foi desapossado de algo que era perene

e agora é a fome da terra   uma linguagem secreta.

                      




COMMOTION DE NOËL

Je suis un espion plus que parfait
mes yeux mes mains ma silhouette
tout ce que j'ai appris tout ce que j'ai oublié
tout ce que j'ai vu Seigneur après votre décès
même les cuillères de bois et l'assiette brute
du dîner
au commencement de la nuit
même les chaussettes avec des trous de mon cousin
même la chemise en lambeaux de mon père
et les joyeux yeux tristes de ma mère
et ce qui nous achetons sans le paiement
et sans un dieu lui paye

Tout cela je garde dans mon coeur.

Dans les nuits les jours de mon adolescence
quand je m'asseyais à méditer
dans la roche peinte de blanc
au moyen du potager de la petite Armandine
qui m'offrait des marrons cuits quand c'était l'automne
et nettoyait mon front avec un mouchoir de lin
en regardant ma sueur de sang.

Tout cela est mon trésor
pour vous cher Monsieur pour vos anges
pour vos assistants dans la forêt céleste
pour les notaires de votre auguste Père
sans oublier le petit que vous avez été
et même le mendiant qui vous a aidé
à monter sur le petit âne
qu'il vous a transporté jusqu' à la porte Suse
ce jour lá de Pâques.

Ainsi, Seigneur, pardonne moi
mes défauts
mes brusques joies
mes étranges silences

et  tous les poèmes que j'ai seulement pensé.


Jules Morot


POUR O.HENRY

Dans son esprit s'est faite lumière
et il a tapoter par centaines le grisbi

Son bouton de gilet ne lui servait pour rien de plus
et dans sa cellule il l'a regardé attentivement
il s'a donné à ce travail
en l’érigeant entre deux doigts 
l'indicateur et le gros pouce

Sa femme l'a cousu à l’époque ancienne
un heureux après midi de bourbon et de sacrés bécots

Il se méfie  se méfie et pourtant
beaucoup est resté pour décider
peut-être des diamants   des horloges des chaînes d'or
mais rien ne l'intéressait déjà   il a eu nécessité
de madrigaux et de quelques monnaies sonnantes
Et tout a été simplement de cette jolie manière.

Nous avons besoin de bien plus de choses
nous   leurs vieux compagnons de promenades
par des villages bruyants
de bien de plus nous avons besoin
mais c'est surement au cours
des temps sans date marquée.

L'amour l'amitié flagrants délits de jeunesse
de bien de plus nous avons besoin
et le monde arrive et apporte
seulement du cotton sordide dans les poches.


(Em linha no TRIPLOV, no UN SOIR UN TRAIN e no AU TOUR DE MA CHAMBRE)

    Cordialmente, desejando-vos um excelente período carnavalesco (...é claro que não me refiro ao ambiente político mas ao Carnaval ele-mesmo!) aqui ficam, com a proverbial estima.

Nota: as fotografias foram obtidas em www.revista.agulha.nom.br

2 comentários:

ora viva disse...

Belos poemas, belas traduções. Venham mais poemas e afins.

Anónimo disse...

E eu diria mesmo mais: venham mais poemas e afins.

Dupont