sexta-feira, 3 de maio de 2013

ÁLVARO DE CAMPOS, THOMAS MANN E O FIM DA EUROPA


 
1

Recebo de presente de Joaquim Simões uma belíssima reprodução fac-similar virtual do número 1 da revista Orpheu, e passo de imediato a me deliciar com os aspectos gráficos, da cor do papel à tipologia à ortografia à diagramação, enquanto avanço o cursor página a página e começo a ler ou reler em sequência os textos ali publicados, “Para os ‘Indícios de oiro’”, de Sá-Carneiro, Poemas, de Ronald de Carvalho, o “drama estático” O marinheiro, de Pessoa, Treze sonetos, de Alfredo Pedro Guisado, as “prosas” de Frizos, de Almada-Negreiros, os Poemas de Côrtes-Rodrigues e, por fim, “Opiário” e “Ode triunfal”, de Álvaro de Campos. Alguma ideia, ou antes, certa sensação foi se formando em meu cérebro enquanto lia, que, como num golpe de serendipidade, só viria à luz da consciência quando, ao terminar de reler “Opiário”, deparei-me com a data de sua redação: “1914, março”.

O ano antes do mês me chamou a atenção, como uma lanterna no olho – principalmente com o mês em seguida. Estava-se a quatro meses da Primeira Guerra Mundial... Claro que isto é um fato conhecido, ou seja, que alguns dos principais poemas de Álvaro de Campos precederam a Grande Guerra e expressavam uma postura crítico-cínico-cética com a cultura europeia da época que, a posteriori, ou “pelo retrovisor”, chega a parecer premonitória. Mas isto não é premonição do autor, e sim anacronismo do leitor. Relendo a revista com a consciência de terem seus poemas sido escritos ou antes da guerra, como “Opiário” e outros, ou depois de seu início, como “Taciturno” de Sá-Carneiro (agosto de 1914), enquanto a própria revista só veio a público no início de 1915, alguns aspectos tornam-se, em todo caso, evidentes.

A leitura seguida dos poemas do número 1 de Orpheu suscitou-me, enfim, uma série de reflexões: por exemplo, nos poemas de Sá-Carneiro ali coligidos, não há diferenças sensíveis, como seria talvez de se esperar, entre os escritos antes do início da guerra e depois, como o citado “Taciturno”. Sua “atmosfera” geral pode ser sintetizada num verso do poema “16”: “Resvalo em pontes de gelatina e bolores...” (p. 12, maio de 1914). O verso inteiro é uma obra-prima e um tour de force de abstracionismo verbal, tomando o termo em seu sentido denotativo, do latim abstrahere, separar. Em linguagem, abstrato é o separado de um referente (daí a pintura abstrata, que não se refere a nada além dela mesma, ficando assim separada de referências externas, ao contrário da arte figurativa, que, ora, figura alguma coisa). A primeira palavra do verso é o verbo resvalar, que é tocar sem tocar, se esquivar, passar por entre, ou seja, tentar se manter fora (separado, “abstraído”) enquanto se está dentro. O segundo termo é ponte, um caminho erguido no ar, e, portanto, descolado, separado, “abstraído” do entorno imediato. O terceiro e o quarto termos dispensam comentários sobre seu abstracionismo sem aspas, pois tanto gelatina quanto bolores são coisas sem forma firme ou definida, com o reforço semântico de bolor lembrar uma mistura, uma impregnação, ou seja, o esvaecimento da linha que define vida e morte, pois bolor é mofo, que recorda decomposição, enquanto o próprio mofo, sendo um fungo, constitui uma forma (informe) de vida. Esse “abstracionismo” semântico-imagético, que poderia ser uma indicação de alguma manifestação de desejo ou intuição de afastamento, de separação (logo, de recusa), de uma Europa à beira da catástrofe, impregna-se, porém, em Sá-Carneiro, de um eu lírico marcado por outro tipo de abstracionismo, caracterizado por metáforas e expressões cujo âmbito não é o da separação, mas o do alheamento. Não traduzem, então, o indivíduo que intui dever ou querer se apartar, ainda que em espírito, de uma Europa “gelatinosa” e “embolorada” que logo se afundará na gelatina dos coágulos e no bolor espesso das trincheiras, mas sim o sujeito que se sente fora dela, por inadequado, ou mesmo por inadequada. O verso anterior ao acima analisado basta para sintetizar essa vertente de alheamento por impregnação abstrata de si, em contraste com o distanciamento pela abstração das coisas do mundo: “Já não é o meu rastro o rastro d´oiro que ainda sigo...”.

Depois de começada a guerra, em agosto de 1914, Sá-Carneiro escreve, em “Taciturno”, de um modo que me lembra certo Baudelaire, já a partir do título (do âmbito do tema do ennui e do spleen). Portanto, o que neste era modernidade, naquele começa a parecer desconexão com ela:

Há Ouro marchetado em mim, a pedras raras,
Ouro sinistro em sons de bronzes medievais –
Joia profunda a minha Alma a luzes caras,
Cibório triangular de ritos infernais. [p. 9]

Pois este soneto “baudelairiano” foi escrito quando a mesma Europa poetizada por Baudelaire já começara a estertorar, ao som dos passos de milhões de botas que marchavam orwellianamente para uma luta kafkiana ou borgeana nos labirintos de trincheiras sem fim no espaço e no tempo. Em suma, Sá-Carneiro me parece, de fato, alheado de sua época.

Num sonho d´Iris, morto a ouro e brasa,
Vem-me lembranças doutro Tempo azul
Que me oscilava entre véus de tule –
Um tempo esguio e leve, um tempo-Asa.
[“Distante melodia”, p. 13, junho de 1914]

O que dizer, neste sentido e naquele contexto, desta estrofe de Côrtes-Rodrigues:
 
Transcendências nublóticas, metafísicas raras,
Modelei a minha Obra com minhas mãos avaras.
Litanias litúrgicas de febre de paixão,
Crepúsculos de fogo ardendo em sentimento.
Colunas de Além-Sonho, arcos de comoção,
Claustros de Arquitristeza aonde o Pensamento
Vive longe do mundo, em funda adoração...
[“Abertura do Livro da vida”, p. 63, 1914]

2

Outra reflexão que me ocorreu foi sobre o que torna um artista maior do que outros. Neste caso, Fernando Pessoa – que, na persona de Álvaro de Campos (não levo a sério o “teatro de máscaras” dos “heterônimos”, nem creio que Pessoa o levasse), ao aparecer no final da revista, desde o primeiro verso de “Opiário”, tem o efeito de uma bomba com a densidade de uma bola de chumbo. Há um realismo, um cinismo, uma lucidez, uma acidez... Claro, estamos a falar de Álvaro de Campos (portanto, de Fernando Pessoa: as diferenças de estilo entre os “heterônimos” são, para mim, expressões do balzaquiano projeto manifesto de Pessoa de dar conta de toda a literatura europeia, da “Arcádia” greco-filosófico-pastoril de Caeiro ao “futurismo” de Álvaro de Campos, passando pelo “camonismo” de Mensagem etc., mas isto é para outro texto).

Em “Opiário” não há tédio, como em Sá-Carneiro: há desdém. Não há alheamento, mas o afastamento ativo da ironia. Isto para não falar que o poema se centra no Outro e nos outros de fato, ou seja, na terceira pessoa, enquanto em Sá-Carneiro o “Outro” é apenas uma abstração, um problema abstrato (e tedioso) para o eu lírico. Aqui, trata-se do navio que atravessa o canal de Suez, do canal de Suez e dos personagens, reais ou realistas, que o ocupam. O Suez é a ligação entre a Europa e o Oriente, ou seja, o fim da Europa e o início do Oriente. Sim, Pessoa também trata ali do tema do alheamento. Aliás, o tema do alheamento seria tomado de assalto por ele a ponto de parecer seu domínio exclusivo ou por excelência. Mas isto não é verdade. Nos dois sentidos: primeiro, quanto aos seus contemporâneos, este era um tema useiro e vezeiro, como fica patente neste mesmo número 1 de Orpheu; segundo, quanto ao próprio Pessoa, ele nunca foi de fato alheio a nada, bastando lembrar que aquele que seria talvez “sempre o da mansarda” (ainda que não morasse nela...), lugar apartado, isolado e alto, usa-a, na verdade, como ponto de vista privilegiado para ver o mundo abaixo como sob um microscópio ao mesmo tempo pragmático, circunstancial e existencial, captando desde detalhes como o chocolate na mão da pequena (e sua embalagem de papel de prata, que é de folha de estanho), até a condição geral de seus semelhantes, de “escravos cardíacos das estrelas”, passando pela placa da tabacaria, seu destino longínquo e enorme (o Nada) e o pequeno gesto sutil e efêmero do Esteves sem metafísica. Deixando o tabaco pelo ópio, e saindo da mansarda para voltar ao Suez, é toda uma Europa em sinédoque que parece habitar passageiramente (em mais de um sentido) o navio. Esse navio que vaga no limite entre Ocidente e Oriente é a própria Europa, um clone ou fantasma ou repetição como farsa do Titanic – com a diferença de que se trata de repetição como tragédia, pois o navio-Europa, no período de algumas semanas de uma viagem marítima, a partir daquele março de 1914 do poema, logo afundará em um mar de sangue.

Pessoa então não o sabia, naturalmente, mas o “sabia”. Não gosto da crença ingênua na literalidade da metáfora de Pound dos poetas como “antenas da raça”, mas é um fato que, de alguma forma, os grandes artistas captam sua época de um modo mais profundo e sensível que os demais, e daí advém boa parte de sua grandeza. É por isso, aliás, por sua densidade afinal histórica, mesmo que como regra não haja historicismo explícito em tais obras (basta pensar em Kafka), que o que chamamos de grandes obras suportam o teste do tempo. Todos os poemas do número 1 de Orpheu envelheceram mal, com exceção de dois que se tornariam, ao contrário, obras-primas paradigmáticas de seu tempo e clássicos automáticos da poesia em língua portuguesa, “Opiário” e “Ode triunfal”, ainda que por motivos distintos.

Meu objetivo, aqui, é tentar compreender a grandeza de “Opiário”, sem desconsiderar tudo o que sobre o poema já foi dito e bem dito, a partir de sua relação temporal com a tempestade que se avizinhava da Primeira Guerra Mundial e do contraste que, ao parecer pressenti-la, Pessoa demonstra com seus pares de geração e, neste caso, de edição.

Seria preciso ainda falar da sintaxe de “Opiário”, que também o distingue de seus pares de Orpheu. Mesmo porque, outros elementos, incluindo temas, imagens e construções que comumente se considera característicos ou mesmo particulares de Pessoa, não o são.

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio
[“7”, p. 7]
 
Fujo de mim como um perfume antigo
foge ondulante e vago de um missal
e julgo uma alma estranha andar comigo,
dizendo adeus a uma aventura irreal.
[“A alma que passa”, p. 21]

As minhas sensações – barcos sem velas –
Erram em mim. Ocaso roxo. Sismo.
Meus olhos de Não-ver-me são janelas
Dando sobre o abismo.

Abismo d´Outro ser. E a Hora chora
Nostálgica de Si, mas eu de vê-las
Erro de Ser-me, e a noite sem estrelas
Apavora.
[“Poente”, p. 64, 1014]

A primeira estrofe é de Sá-Carneiro, a estrofe do meio, de Ronald de Carvalho, e as duas últimas, de Côrtes-Rodrigues. E todas têm algo de “pessoano”, ao menos do Pessoa de uma de suas vertentes mais conhecidas, a do eu lírico existencial e sintaticamente estranhado.

Para falar, enfim, da sintaxe de “Opiário”, ela é mais direta, mais seca, mais rápida e, portanto, mais moderna, do que se vê no restante da revista, o que se casa com um vocabulário mais concreto e imagens mais imediatas e realistas. Se ainda há lugar para estrofes “baudelairianas” ou “fin-de-siècle”, como a terceira (“Em paradoxo e incompetência astral / Eu vivo a vincos de ouro a minha vida, / Onda onde o pundonor é uma descida / E os próprios gozos gânglios do meu mal”), elas convivem com imagens e termos modernos, como “engrenagens” e “mecanismos”, presentes já na estrofe seguinte (“É por um mecanismo de desastres, / Uma engrenagem com volantes falsos, / Que passo entre visões de cadafalsos / Num jardim onde há flores no ar, sem hastes”), enquanto o poema evolui consistente e crescentemente para a modernidade substantiva e objetiva referida no início (“A vida a bordo é uma coisa triste, / Embora a gente se divirta às vezes. / Falo com alemães, suecos e ingleses / E a minha mágoa de viver persiste // Eu acho que não vale a pena ter / Ido ao Oriente e visto a Índia e a China. / A terra é semelhante e pequenina / E há só uma maneira de viver”).

Voltando agora à “narrativa” existencial e circunstancial do poema, é com essa “mágoa de viver que persiste” que o narrador retorna à Europa, apesar de não querê-lo (“Volto à Europa descontente”), entre alemães, suecos e ingleses. Ingleses satirizados numa estrofe magistral, que parece uma síntese do futuro romance de Graham Greene, The quite american (O americano tranquilo – ou ingênuo): “Os ingleses são feitos pra existir. / Não há gente como esta pra estar feita / Com a Tranquilidade. A gente deita / Um vintém e sai um deles a sorrir”. Essa ingenuidade satisfeita, confiante e crédula, que Graham Greene detectará décadas depois em outro poderoso povo saxão às vésperas de uma guerra, os americanos que começam a se envolver no Vietnã sem se aperceber da realidade imediata e tranquilamente assentes em suas crenças, é muito semelhante à que Pessoa flagra nesses ingleses que cruzam o Suez ingenuamente de volta à Europa, onde, por uma corrida armamentista naval entre a Grã-Bretanha e a Alemanha do kaiser Guilherme (motivo principal de a primeira entrar na guerra e assim “mundializá-la”, inclusive pelo Império Britânico, deixando de ser um conflito continental europeu como tantos outros), a grande guerra na verdade já começara, anos antes de o primeiro tiro ser disparado em Sarajevo.

É, enfim, nas estrofes finais que percebo o que seria certa percepção de Pessoa daquele momento histórico, a poucas semanas do início da Primeira Guerra Mundial.

Febre! Se isto que tenho não é febre,
Não sei como é que se tem febre e sente.
O fato essencial é que estou doente.
Está corrida, amigos, esta lebre.

Veio a noite. Tocou já a primeira
Corneta, pra vestir para o jantar.
Vida social por cima! Isso! E marchar
Até que a gente saia pla coleira!

Porque isto acaba mal e há-de haver
(Olá!) sangue e um revólver lá pró fim
Deste desassossego que há em mim
E não há forma de se resolver.

E quem me olhar, há-de-me achar banal,
A mim e à minha vida... Ora! um rapaz...
O meu próprio monóculo me faz
Pertencer a um tipo universal.

Ah quanta alma viverá, que ande metida
Assim como eu na Linha, e como eu mística!
Quantos sob a casaca característica
Não terão como eu o horror à vida?

[...]


Tenho vontade de levar as mãos
À boca e morder nelas fundo e a mal.
Era uma ocupação original
E distraía os outros, os tais sãos.

O absurdo, como uma flor da tal Índia
Que não vim encontrar na Índia, nasce
No meu cérebro farto de cansar-se.
A minha vida mude-a Deus ou finde-a ...

Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,
Até virem meter-me no caixão.
Nasci pra mandarim de condição,
Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.

Ah que bom que era ir daqui de caída
Pra cova por um alçapão de estouro!
A vida sabe-me a tabaco louro.
Nunca fiz mais do que fumar a vida.

E afinal o que quero é fé, é calma,
E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —
E basta de comédias na minh'alma!

Se o que se quer é fé e calma, é porque a calma e a fé estão perdidas, e em seu lugar há “sensações confusas” de um inútil de monóculo e com febre... Tudo isso, afinal, fez-me lembrar, nesta releitura de “Opiário” à luz de sua data de redação e desse navio-Europa a vagar vagarosamente rumo ao desastre, de A montanha mágica.

Thomas Mann apresenta em seu livro uma Europa-montanha que é, ao mesmo tempo, uma Europa-sanatório, onde se discutem febrilmente ideias febris, no famoso debate entre Settembrini e Naphta pela “alma” do “ingênuo” (mais uma vez) Hans Castorp, par geracional do narrador de “Opiário”. Para não me estender aqui sobre esse debate, que ocupa dezenas e dezenas de páginas, cito a síntese “brutal” de Fritz Kaufmann em Thomas Mann: The World As Will And Representation (Nova York, Cooper Square, 1973): “o advogado do progresso e da organização racional da vida humana” versus “o espírito absoluto e sobrenatural” (p. 245). Iluminismo versus niilismo, racionalismo versus espiritualismo, cientificismo versus religiosidade, classicismo versus romantismo, democracia versus individualismo aristocrático. A Europa da modernidade versus a Europa da persistência do Antigo Regime.

3

The persistence of the Old Regime, cujo subtítulo é Europe to the Great War, do historiador norte-americano Arno J. Mayer, subverte a interpetração tradicional da história europeia recente, que seria a crônica da irresistível ascensão da modernidade à custa do definhamento do Antigo Regime. E, como sintetizado pelo subtítulo, pode assim lançar uma luz de clareza surpreendente sobras as causas mais profundas que levaram à Primeira Guerra Mundial. Daí eu introduzi-lo algo repentinamente aqui.
[1]

A catástrofe da primeira metade do século XX, que soma os milhões de mortos da Primeira Guerra Mundial às dezenas de milhões de mortos da Segunda Guerra, não seria simplesmente debitável na conta do capitalismo, da razão instrumental e, em suma, da modernidade, como afirma certa vulgarização do pensamento de Adorno. Ao contrário desse raciocínio simplista e maniqueísta, além de antimodernista, uma análise mais abrangente e complexa indica que a catátrofe deve ser debitada a um enfrentamento catastrófico final entre as forças modernas de mudança e as de persistência do Antigo Regime, de origem medieval.
 
Mesmo depois da Revolução Francesa, o retorno à antiga ordem, determinado pelo Congresso de Viena após a derrota de Napoleão, levaria a uma “Europa legitimista, reacionária e clerical”.[2] É justamente essa Europa que, ao longo do restante do século XIX, tentará ser, apesar disso, e ao lado disso, revolucionária, materialista e deslegitimadora de todas as tradições.

A [Primeira] Grande Guerra foi antes a expressão da decadência e queda da antiga ordem, lutando para prolongar sua vida, que do explosivo crescimento do capitalismo industrial, resolvido a impor sua primazia. Por toda a Europa, a partir de 1917, as pressões de uma guerra prolongada afinal abalaram e romperam os alicerces da velha ordem entricheirada, que havia sido sua incubadora. Mesmo assim, à exceção da Rússia, onde se desmoronou o antigo regime mais obstinado e tradicional, após 1918-1919 as forças da permanência se recobraram o suficiente para agravar a crise geral da Europa, promover o fascismo e contribuir para a retomada da guerra total em 1939.
[3]

Se a barbárie do século XX, iniciada na Primeira Guerra Mundial (que opôs impérios a reinos – e apenas duas repúblicas, a França e os EUA –, com seus exércitos de massa comandados por estamentos aristocráticos), é, na verdade, o resultado das ainda poderosas forças de resistência à modernidade fazendo uso das enormes forças da própria modernidade, como a economia capitalista e a sociedade industrial, a fim de tentar manter-se apesar de tudo no poder, a modernidade não resultou afinal em catástrofe pelo pecado congênito da “arrogância” moderna, mas pelo fracasso em vencer política, social e culturalmente, de modo ainda mais profundo e cabal, as forças e a visão de mundo pré-modernas, portanto, antimodernas, incluindo a Igreja – que apesar de tudo, no início do século XX, ainda eram mais fortes, além de fortemente acuadas por seu enfraquecimento constante, do que a Europa urbana, capitalista e industrial fazia parecer. Ou queria crer. Daí Settembrini ainda ter de disputar com Naphta a “alma” da juventude europeia.
 
Febre! Se isto que tenho não é febre,
Não sei como é que se tem febre e sente.
O fato essencial é que estou doente.
Está corrida, amigos, esta lebre.


Essa “lebre” que já “está corrida” não era afinal outra senão a do destino da Europa. Daí o título deste artigo: o fim da Europa como centro (porque criadora) da civilização ocidental, lugar que ocupou desde que Alexandre da Macedônia destruiu o Império Persa e eliminou a região da Mesopotâmia e do planalto iraniano como centro civilizacional euroasiático concorrente, criando ao mesmo tempo a civilização helênica que seria em seguida incorporada (em todos os sentidos) pelo Império Romano, sucedido pela Cristandade e, esta, pela modernidade iniciada nos séculos XIV e XV e realizada pelas grandes navegações do século XVI, o fim da Europa começou, como se sabe, com a Primeira Guerra Mundial – fruto paradoxal e fratricida do ápice de seu poder econômico, geopolítico, tecnológico, artístico e cultural. E é disto que tratam, conscientemente, A montanha mágica (iniciado em 1912, portanto antes da guerra, mas finalizado apenas em 1924) e, intuitivamente, “Opiário”.



[1] A força da tradição [tradução ruim de A persistência do Antigo Regime], São Paulo, Cia das Letras, 1987, pp. 13-4. Arno Mayer, naturalmente, não está sozinho. Outros historiadores importantes, mesmo quando não adotam diretamente sua tese, chegam a conclusões semelhantes, ainda que de modo menos sistemático. Cf. Jacques Godechot, As revoluções (1770-1799), São Paulo, Pioneira, 1976.
[2] J. B. Duroselle, A Europa de 1815 aos nossos dias, São Paulo, Pioneira, 1985, p. 11.
[3] Mayer, opus cit., p. 14.

3 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom texto de Dolhnikoff, muito boa oferta de Joaquim Simões. E é sempre um gosto ler-se em letra de forma, na usualmente desastrada blogosfera que tanto fala em alpinistas e corredores pedestres como o...e o... e a...(mas mantenhamos a circunspeção de cavalheiros de gaita rija) o nome digno e genial de Thomas Mann. Num é?

Nortenho mas benfiquista

Joaquim Simões disse...

Excelente texto, Luís! Que magnífica retribuição do meu "presente"!
Abraço.

Luís Dolhnikoff disse...

Sou eu, na verdade, que tenho de agradecer a oportunidade de escrevê-lo gerada por seu presente, Joaquim, incluindo a de lembrar do "digno e genial" Thomas Mann, para concordar com o Nortenho benfiquista.