quarta-feira, 29 de maio de 2013

Assim que cheguem os dias... (Tant qu'il aura des jours...)‏


Paul Cézanne, L'Estaque 


Sim - os dias, os grandes dias amenos na Provença e na Grand Prairie, tão justamente celebrados em novelas inolvidáveis por Marcel Pagnol, Jules Lemaitre e Marcel Scipion ou, já nas bandas do cinema, por Claude Berri, Jean Renoir, Marcel l'Herbier...

   Nesses lugares, se em boa companhia estamos, os dias são amáveis e fecundos. E se a companhia for, por exemplo, o filho do Sr. Antoine Morot (infelizmente já falecido) criador de vinhos, nomeadamente do famoso e gostoso Jolibleu Chambray e estivermos nas suas caves de La Jolle, acompanhados também pela presença de sua esposa Marcelle (ajudante vinhateira mas também pintora e ceramista-tapeceira) então a coisa magnifica-se, tanto mais que com aquele pundonoroso tintol costumam aprochegar-se iguarias de mui fino trato... para acalentarmos as papilas e a poesia que nisso tudo está inclusa.


Paul Cézanne, Natureza morta com cesto de maçãs



 Resumindo: lá mais para o tempo quente terei ensejo de rever aqueles amigos, a que se juntarão talvez os confrades de Espanha Ignacio Maragall e Maria Darmyn. E poderei então contemplar os painéis (de azulejo e pano tapeceiro) que, comunicaram-mo hoje, já estarão encaixados nas paredes da sala de entrada da adega e no salão da vivenda próxima aonde residem.


 Para aquilatarem da qualidade lírica do vinhateiro em causa (risos), aqui vos deixo 3 poemas 3 da sua produção, que tem um travo frutado, prudentemente encorpado e com um eflúvio floral - mas que só trepa galhardamente se nos dermos a desmandos sem norte e sem estrela. Mas adiante!


Jules Morot


TRÊS POEMAS DE JULES MOROT


ANDANÇAS

   As minhas viagens são feitas de acasos e de sombras. Ou de sombras e de acasos, pois a soma e a sequência dos factores por vezes é arbitrária. Ou não será assim?
  Não importa de momento, agora o que é preciso evocar são as grandes presenças das florestas passando por mim, sobre mim, por sobre a minha cabeça, os meus pés, as minhas mãos e os meus ombros. A roupa que me veste e que de tempos a tempos me desnuda, o mar que sempre recordo, naquela tarde ensolarada, naquele fim de tarde quando uma estrela já luzia no céu, o banco de jardim onde me sentei um dia numa pequena terra de Espanha, os grandes lumes acesos na serra, as fogueiras que me deslumbravam, me deixavam surpreso pois ainda não conhecia o fogo e a sua incontável arquitectura plena de terrores e de encantamentos, a voz do vento lá por fora, pelos caminhos da montanha, solitários como flores num bosque que não se sabe bem em que lugar fica.

 As minhas viagens são feitas de amargura pois não mais voltarão. São como um rochedo num bosque silente na manhã, um bosque onde animais nasceram e animais morreram, a doçura de um raio de sol ou de luar sobre o dorso de um lobo ou de uma inconcreta aparição.

  Tenho a tua mão e não tenho a tua mão. Imagens rodeiam-me e são coisas que existem, o pão e a água trazida dos lugares mais remotos e que nos habitam. A minha água interior, a tua água que ressuma, que bebi no teu coração, os teus olhos que já não reconheço, o fulgor do passado. As casas que correm ao meu redor, o rufar repentino de um combóio perdido e aquela voz de mulher dizendo para a outra, a mais nova, a mais vistosa: “Ali era o nosso quarto, lembras-te? Tantas vezes que nos pusemos ali à janela, ainda o Pai era vivo!”. A memória que se esconde para sempre num recantozinho do cérebro, como um retrato humilde ao canto de uma mesa numa sala muito antiga.

  As minhas viagens são feitas de tudo o que nos ampara e desampara nas grandes caminhadas, ao longo dum rio ou dum deserto.

  As minhas viagens são como livros amados e iguais aos crimes de outro alguém que existe e não existe, um alguém que mora dentro de mim e do peito que ainda conservo mergulhado neste tempo, no outro tempo, em todos os tempos do universo.



 Nicolau Saião, A colheita (painel de azulejo, 150 x 315 cm)


MOZART

Lêem-se os gregos
suecos, alemães
ou a doce língua
de não sei quantos
de não sei que imóvel pedaço de página
claves de sol
talvez o latim o alano o islandês
e é sempre a mesma música
sempre como um veio numa flor grossa obscena
Diz um   um alfinete   diz outro
um parafuso
pois sim
uma fina difusa coisinha semimorta
semi-deitada
semi-cerrada
uma inteligente coisa muda
maior que um tiro na orelha
pois não
uma espécie de porta
de dor discreta.

Meu bom senhor
olhai
nos prados nas tabernas
nos ermitérios
nos armários
um rasto de cão

Nos óculos do primeiro violino
tudo desaparece.

Tendes vós sono, desejo
de novas estações? Tendes florins?
Tendes, acaso, em dias
já passados
mãos musicais, sinais
de outras mortes?


Nicolau Saião, A criação do mundo (tapeçaria, 150 x 300 cm)


O BESOURO

Soa lá fora
espalha-se pela casa
no calor das árvores que aguardam
o mais curto caminho
humano   na direcção do ribeiro
o besouro   o seu som de campainha
de sineta
astucioso repicar  e logo
lembranças vagas na tarde
pequeno fio de memória nos nossos ouvidos
e  é exacto  um esvoaçante ser que em rodopios
perpassa
por sobre os roseirais
a sombra hirta dos sentidos.

Um harpejo
de violinos no nosso olhar reflectido
nos vidros
de hoje e amanhã
Agora um gesto  um balbuceio
um simples animal   de metal furando a tarde
seguro   bem seguro
do seu talento  da sua carne temporária
lembrança de céus distantes
de anos repassados   de poeira

de roteiros felizes.


in Jules Morot, Le mardis-gras
Tradução de Nicolau Saião


(Dados a lume, respectivamente, no "TRIPLOV" e na "DiVERSOS – revista de poesia e tradução". Trechos do seu livro La chambre engloutie foram dados a lume por Floriano Martins na "AGULHA – revista de cultura", Brasil)

Nota - O tradutor, aqui como em textos de sua autoria, não segue os preceitos do chamado Acordo Ortográfico.

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