Paul Cézanne, L'Estaque
Sim - os dias,
os grandes dias amenos na Provença e na Grand Prairie, tão justamente
celebrados em novelas inolvidáveis por Marcel Pagnol, Jules Lemaitre
e Marcel Scipion ou, já nas bandas do cinema, por Claude Berri, Jean
Renoir, Marcel l'Herbier...
Nesses lugares, se em boa companhia estamos, os dias são amáveis e fecundos. E
se a companhia for, por exemplo, o filho do Sr. Antoine Morot (infelizmente já
falecido) criador de vinhos, nomeadamente do famoso e gostoso Jolibleu Chambray
e estivermos nas suas caves de La Jolle, acompanhados também pela presença de
sua esposa Marcelle (ajudante vinhateira mas também pintora
e ceramista-tapeceira) então a coisa magnifica-se, tanto mais que com
aquele pundonoroso tintol costumam aprochegar-se iguarias de mui fino
trato... para acalentarmos as papilas e a poesia que nisso tudo está inclusa.
Paul Cézanne, Natureza morta com cesto de maçãs
Resumindo:
lá mais para o tempo quente terei ensejo de rever aqueles amigos, a
que se juntarão talvez os confrades de Espanha Ignacio Maragall e Maria
Darmyn. E poderei então contemplar os painéis (de azulejo e pano tapeceiro)
que, comunicaram-mo hoje, já estarão encaixados nas paredes da sala de entrada
da adega e no salão da vivenda próxima aonde residem.
Para aquilatarem
da qualidade lírica do vinhateiro em causa (risos), aqui vos deixo 3
poemas 3 da sua produção, que tem um travo frutado, prudentemente encorpado e
com um eflúvio floral - mas que só trepa galhardamente se nos dermos a desmandos
sem norte e sem estrela. Mas adiante!
Jules Morot
TRÊS POEMAS DE JULES MOROT
ANDANÇAS
As minhas viagens são feitas de acasos e de sombras. Ou de sombras e de
acasos, pois a soma e a sequência dos factores por vezes é arbitrária. Ou não
será assim?
Não importa de momento, agora o que é preciso evocar são as grandes
presenças das florestas passando por mim, sobre mim, por sobre a minha cabeça,
os meus pés, as minhas mãos e os meus ombros. A roupa que me veste e que de
tempos a tempos me desnuda, o mar que sempre recordo, naquela tarde ensolarada,
naquele fim de tarde quando uma estrela já luzia no céu, o banco de jardim onde
me sentei um dia numa pequena terra de Espanha, os grandes lumes acesos na
serra, as fogueiras que me deslumbravam, me deixavam surpreso pois ainda não
conhecia o fogo e a sua incontável arquitectura plena de terrores e de
encantamentos, a voz do vento lá por fora, pelos caminhos da montanha,
solitários como flores num bosque que não se sabe bem em que lugar fica.
As minhas viagens
são feitas de amargura pois não mais voltarão. São como um rochedo num bosque silente na manhã, um
bosque onde animais nasceram e animais morreram, a doçura de um raio de sol ou
de luar sobre o dorso de um lobo ou de uma inconcreta aparição.
Tenho a tua mão e não tenho a tua mão. Imagens rodeiam-me e são coisas
que existem, o pão e a água trazida dos lugares mais remotos e que nos habitam.
A minha água interior, a tua água que ressuma, que bebi no teu coração, os teus
olhos que já não reconheço, o fulgor do passado. As casas que correm ao meu
redor, o rufar repentino de um combóio perdido e aquela voz de mulher dizendo
para a outra, a mais nova, a mais vistosa: “Ali
era o nosso quarto, lembras-te? Tantas vezes que nos pusemos ali à janela,
ainda o Pai era vivo!”. A memória que se esconde para sempre num
recantozinho do cérebro, como um retrato humilde ao canto de uma mesa numa sala
muito antiga.
As minhas viagens são feitas de tudo o que nos ampara e desampara nas
grandes caminhadas, ao longo dum rio ou dum deserto.
As minhas viagens são como livros amados e iguais aos crimes de outro
alguém que existe e não existe, um alguém que mora dentro de mim e do peito que
ainda conservo mergulhado neste tempo, no outro tempo, em todos os tempos do
universo.
Nicolau Saião, A colheita (painel de azulejo, 150 x 315 cm)
MOZART
Lêem-se os
gregos
suecos,
alemães
ou a doce
língua
de não sei
quantos
de não sei
que imóvel pedaço de página
claves de sol
talvez o
latim o alano o islandês
e é sempre a
mesma música
sempre como
um veio numa flor grossa obscena
Diz um um alfinete
diz outro
um parafuso
pois sim
uma fina
difusa coisinha semimorta
semi-deitada
semi-cerrada
uma
inteligente coisa muda
maior que um
tiro na orelha
pois não
uma espécie
de porta
de dor
discreta.
Meu bom
senhor
olhai
nos prados
nas tabernas
nos
ermitérios
nos armários
um rasto de
cão
Nos óculos do
primeiro violino
tudo
desaparece.
Tendes vós
sono, desejo
de novas
estações? Tendes florins?
Tendes,
acaso, em dias
já passados
mãos
musicais, sinais
de outras
mortes?
Nicolau Saião, A criação do mundo (tapeçaria, 150 x 300 cm)
O BESOURO
Soa lá fora
espalha-se
pela casa
no calor das
árvores que aguardam
o mais curto
caminho
humano na direcção do ribeiro
o
besouro o seu som de campainha
de sineta
astucioso
repicar e logo
lembranças
vagas na tarde
pequeno fio
de memória nos nossos ouvidos
e é exacto
um esvoaçante ser que em rodopios
perpassa
por sobre os
roseirais
a sombra
hirta dos sentidos.
Um harpejo
de violinos
no nosso olhar reflectido
nos vidros
de hoje e
amanhã
Agora um
gesto um balbuceio
um simples
animal de metal furando a tarde
seguro bem seguro
do seu
talento da sua carne temporária
lembrança de
céus distantes
de anos
repassados de poeira
de roteiros
felizes.
in Jules Morot, Le
mardis-gras
Tradução de Nicolau Saião
(Dados
a lume, respectivamente, no "TRIPLOV" e na "DiVERSOS – revista de poesia e
tradução". Trechos do seu livro La
chambre engloutie foram dados a lume por Floriano Martins na "AGULHA –
revista de cultura", Brasil)
Nota - O tradutor, aqui como em textos de
sua autoria, não segue os preceitos do chamado Acordo Ortográfico.
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