quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

DEMOCRACIA MUÇULMANA


1 Nota introdutória


Talvez a questão político-ideológica mais importante da atualidade seja a sintetizada por este título: a democracia muçulmana. Pois é tão fácil aproximar as duas palavras no papel quanto parece difícil integrá-las na realidade política dos países islâmicos. E essa dificuldade está na raiz de uma grande instabilidade sociopolítica que afeta ou ameaça afetar inúmeros países em várias partes do mundo. A imprensa mundial participa naturalmente desse debate, mas, como regra, de modo fragmentário. Esta é, em suma, uma tentativa de ser mais abrangente (e menos tímido) do que o habitual.


2 Alguma história


Os países árabes, ou as regiões em que hoje estão os estados árabes, foram, em sua maior parte, colônias do Império Otomano por cerca de meio milênio, até o fim do século XIX e, principalmente, até a Primeira Guerra Mundial. Com o fim do Império Otomano após sua derrota na guerra, tornaram-se colônias de impérios europeus, notadamente França, Inglaterra e Itália (Líbia), por umas poucas décadas, até o período pós-Segunda Guerra Mundial. A maioria desses países conquistaria a independência nos anos 1950 (outros já nos anos 1930).

Mas em nenhum desses países a independência significou o início da construção de uma sociedade civil com direitos políticos, jurídicos e econômicos realmente robustos. Certo senso comum desinformado ou ideologicamente interessado imputa esta circunstância às potências ocidentais, que teriam imposto ditaduras títeres aos novos Estados independentes, a fim de garantir governos dóceis em países mergulhados em petróleo. Muito pouco disso resiste minimamente aos fatos.

A maioria dos países árabes não tem petróleo. Marrocos, Tunísia, Egito, Líbano, Síria, Jordânia, Iêmen e Oman, por exemplo (o Egito produz gás natural em escala razoável, mas não é um exportador importante de hidrocarbonetos). Além disso, muitos foram controlados por governos antiocidentais durante a maior parte da segunda metade do século XX.


3 O caso egípcio


  O caso paradigmático é o Egito. Em 1952, um movimento político-militar nacionalista depôs o pró-ocidental rei Farouk, proclamando a república em 1953, sob comando do general Naguib.
 Em 1954, o coronel Gamal Abdel Nasse deu um golpe dentro do golpe e assumiu a presidência vitalícia, declarando a independência integral do Egito, com a nacionalização do canal de Suez, ainda sob domínio britânico. O governo Nasser era nacionalista e antiocidental, além de anti-israelense. No contexto da Guerra Fria, seria um aliado figadal da União Soviética.

Foi, portanto, com armas e instrutores soviéticos que Nasser, ao longo de duas décadas, construiu um grande exército a fim de invadir Israel, o que tentaria em julho de 1967. Sua derrota na Guerra dos Seis Dias fez seu governo se arrastar por mais três anos, até sua morte, em 1970. Foi substitído por um homem de seu staff, Anuar Sadat, que tentaria mais uma vez invadir Israel em 1973. A nova derrota na guerra do Yom Kippur obrigou o establishment político-militar egípicio a repensar o caminho nasserista, ou seja, criar uma grande potência militar que imporia sua liderança ao mundo árabe pela derrota de Israel. Em 1979, Sadat assinou a paz com Israel. Com isso, deveria haver uma inflexão para a política interna, a fim de afinal se começar a resolver os multisseculares problemas socioeconômicos do país. Mas Sadat foi assassinado por terroristas islâmicos ligados à Irmandade Muçulmana. Seu sucessor, também do staff de Nasser, o general Hosni Mubarak, incrementou o combate à Irmandade, que vinha sendo travado por todos os governos egípcios, com destaque para o próprio Nasser, desde os anos 1930. O mesmo Mubarak, a partir dos anos 1980, ante o fracasso histórico das políticas nasseristas e com o crescente enfraquecimento da União Soviética, afinal “mudou de lado” e tornou-se um aliado dos EUA. As três décadas do governo Mubarak, enfim derrubado pela Primavera Árabe, não podem, em todo caso, ser responsabilizadas pelo que o Egito é hoje.

O Brasil viveu sob um governo militar por um período equivalente, entre 1964 e 1985. Não foi a ditadura militar quem criou as históricas mazelas do país, como a distribuição de renda obscena, o analfabetismo sistêmico, a infraestrutura atrasada, o sistema político oligárquico. É verdade que o governo militar brasileiro serviu para desarticular as forças políticas populares e de esquerda que, pretensamente, visavam implementar reformas históricas no país. Mas é igualmente verdade que tais forças, integradas por parte da burguesia nacional (a nacionalista), movimentos agrários politicamente atrasados e uma esquerda urbana pró-soviética, trazia em seu bojo tantas contradições que apenas a derrota histórica frente à direita e aos militares permitiu a criação do mito anacrônico de uma unidade de propósitos reformistas, democráticos e modernizantes que, mais mítica do que verdadeira, muito dificilmente teria chegado aos resultados imaginados. A história do Brasil teria sido outra, sem dúvida. Mas não é sem dúvida que teria sido a que se desejava. Os grupos de esquerda urbanos, como dito, pretendiam implementar uma ditadura do proletariado ao estilo soviético. Para isso, teriam de derrotar não apenas a direita, mas também o centro democrático. E uma ditadura à la União Soviética, com sua inépcia econômica, difilmente resolveria os históricos problemas nacionais. Em países como Brasil e Egito, de profundos e profundamente históricos problemas socioeconômicos, imputar as causas a um governo recente, ou projetar as soluções num governo milagroso, é ilusão ou mentira.

Derrubado o governo do general Mubarak pela Primavera Árabe, a solução milagrosa apontada para o Egito foi a democracia.

O exército secularista, de origem nasserista, recuou do centro da cena política pela primeira vez na história egípcia republicana, e promoveu eleições para a presidência e para um novo Parlamento constitucionalista (que teria de redigir a nova Constituição). Tanto as eleições legislativas quanto a executiva foram vencidas pela Irmandade Muçulmana.

O atual presidente egípcio, Mohamed Morsi, apesar de proclamar sua adesão ao islamismo moderado e de evocar o “modelo turco”, logo impôs medidas de exceção, que aumentaram ditatorialmente o poder executivo, tentou limitar e controlar o poder judiciário e, por fim, levou à volta das revoltas populares, também atiçadas pelo caminho que tomou a nova Constituição, muito mais islâmica do que parte importante da população gostaria, principalmente a urbana. A neonata democracia egípcia parece, agora, correr o sério risco de se tornar natimorta.


4 O ocaso tunisiano


O mesmo acontece na Tunísia, berço da Primavera Árabe. O partido islâmico também autoproclamado moderado e seguidor do “modelo turco”, o Ennahda, tomou o poder nas primeiras eleições gerais, ao lado de um Parlamento igualmente comandado por grupos islâmicos. O resultado foi uma rápida e crescente onda de pressão pela islamização da sociedade tunisiana, uma das mais seculares do mundo árabe, por grupos militantes que, sob a conivência ou indiferença do governo islâmico “moderado”, passaram a ameaçar jornais e jornalistas, partidos seculares, escolas mistas e cinemas. A pressão ismalita e a conivência ou indiferença governamental resultaram, na semana passsada, no assassinato do principal líder da oposição democrática e secular, Chokri Belaid, uma das mais importantes e críticas lideranças políticas, líder do Movimento dos Patriotas Democratas, o principal grupo da coligação Frente Popular, que se apresenta como uma alternativa secular de poder. Sua morte levou à atual revolta popular, à dissolução do governo e à ameaça de uma guerra civil. Para usar um clichê repetido pela imprensa internacional, a Tunísia está à beira do caos.


5 A experiência argelina


A Argélia contemporânea é um fruto político da guerra de independência contra a França, travada duramente entre 1947 e 1962. Tanto a guerra de independência quanto os governos argelinos subsequentes foram liderados pela Frente de Libertação Nacional (FLN), que além de partido governante, também daria origem ao novo exército nacional.

Após quase 30 anos de governo nacionalista da FLN, em 1989 inicia-se um processo de abertura política através da redação de uma nova Constituição, que instituiu o pluripartidarismo. No primeiro turno das eleições parlamentares subsequentes, em dezembro de 1991, a Frente Islâmica de Salvação, FIS, conquistou 188 cadeiras, contra 43 dos demais partidos. O segundo turno, em que se disputariam as 199 cadeiras restantes, apontava para uma vitória literalmente esmagadora da FIS. Esmagadora porque a vitória da FIS significaria a morte da recém-nascida democracia argelina, pois seu programa de governo pretendia reconstruir o Estado sob diretrizes religiosas. Ou seja, não apenas extinguir a democracia representativa pluripartidária, como a própria república, que seria substituída por uma teocracia. Tratava-se, nas palavras do grande orientalista Bernard Lewis, da estratégia do “um homem, um voto, uma vez”. O exército deu um golpe republicano e abortou o segundo turno das eleições, levando a uma guerra civil que se estenderia até 1995. Eleições subsequentes foram realizadas, mas sem a participação da Frente Islâmica de Salvação, posta na ilegalidade.


6 Alguma teoria política: o governo representativo


As democracias modernas têm origem nos governos representativos ocidentais que nasceram das experiências históricas da monarquia constitucional inglesa, da república norte-americana e da revolução francesa. No campo das ideias, o liberalismo, em suas diversas correntes, impôs-se na formulação de princípios e modelos teóricos. Da conjugação da experiência concreta e dos diversos matizes do pensamento liberal, há alguns elementos possíveis de se identificar como inerentes à democracia moderna.

Um deles é ser a sua origem, justamente, o governo representativo, e não a democracia direta: isto significa que as decisões são tomadas por representantes eleitos pelos cidadãos, ou seja, não por todos os cidadãos nem por seus delegados. Isto traz consequências aparentemente óbvias, nem por isso desimportantes. O senso comum tende a imaginar que, para haver democracia, o compromisso do representante com seu eleitor deve ser o de realizar promessas e compromissos de campanha, dedicando seu mandato a cumpri-los fielmente. Mas não é este o princípio que rege um governo representativo. Desde a origem deste tipo de governo, os representantes eleitos gozaram de autonomia para tomar decisões. Uma autonomia necessária.

Qual seria o sentido de formarem uma assembleia e debaterem questões políticas, se estivessem atados aos desejos prévios de seus eleitores, sem autonomia decisória? Mas se os representantes têm e devem ter autonomia para decidir, como se estabelece uma relação de representação? Em que medida representam, então, seus eleitores? Em que medida é garantido um compromisso entre representante e eleitor? Em suma, como o grande paradoxo da democracia representativa pode ser e é, se não eliminado, racionalizado e equacionado?

Esse compromisso, a essência desse tipo de democracia, baseia-se na liberdade de informação e na transparência dos debates e decisões parlamentares. Daí o voto secreto (por exemplo, para as presidências da Câmara e do Senado), praticado e defendido por muitos no Congresso brasileiro, ser radicalmente antidemocrático. Pois se os representantes eleitos não podem, para participar de uma assembleia política, que deve decidir e legislar sobre inúmeros e às vezes imprevistos aspectos políticos e legais, ater-se de modo puro e duro a compromissos de campanha (cuja natureza então algo falaciosa e suas possíveis soluções não cabem discutir aqui), eles devem, em compensação, participar de tal assembleia de modo a poderem ser julgados politicamente pelos eleitores. O veredito desse julgamento será dado nas eleições seguintes.

A democracia representativa, como bem a sintetiza a expressão inglesa, é um complexo e sutil sistema de “checks and balances”, ou “freios e contrapesos”. Esta expressão, normalmente utilizada para definir a divisão do poder em poderes vários (como executivo, legislativo e judiciário), o que impede o poder unitário e, portanto, absolutista, também serve para descrever a ideia por trás da representatividade política da democracia liberal. A fim de equilibrar e contrabalançar a capacidade do eleitor de pressionar seu representante, existem a opinião pública e o mandato por tempo limitado. O representante será julgado durante seu mandato pela opinião pública, e receberá um veredito a posteriori, quando se candidatar à reeleição. Para que o sistema funcione, tanto a liberdade de informação e de expressão quanto a transparência do debate político e das decisões são sine qua non.
[1]


7 Alguns pressupostos
 

A democracia representativa, portanto, pressupõe a existência de uma sociedade civil, que se manifesta pela opinião pública e pelo voto. A sociedade civil, então, não surge pela manifestação pública ou pelo voto. Estes é que nascem da existência da sociedade civil. Os exemplos citados, a monarquia constitucional inglesa, a república norte-americana e a revolução francesa, resultaram de embates políticos e debates ideológicos, em que se destacam as ideias do liberalismo inglês e do iluminismo francês. Onde esses embates e debates puderam levar a reformas, a democracia representativa foi instituída por reformas, como no caso inglês. Onde não puderam, foram necessárias revoluções, como nos casos francês e americano. Tudo isso pressupõe a existência de classes sociais e circunstâncias sociopolíticas que nasceram e se desenvolveram à sombra do Antigo Regime, como a burguesia, o proletariado industrial, a população urbana, a imprensa, a filosofia política, criando uma sociedade civil com direitos políticos, jurídicos e econômicos mínimos. Essas classes e essas circunstâncias afinal geraram as demandas e as condições para o surgimento da moderna democracia representativa, à custa da extinção reformista ou revolucionária do poder absolutista ou oligárquico.

Um problema diferente se coloca quando se pretende instituir o governo representativo na ausência de uma sociedade civil. As soluções também devem ser, necessariamente, diferentes.


8 A famosa (e falsa) solução turca
 

A Turquia, mais sólido exemplo de democracia muçulmana, e famosa exceção histórica a confirmar a regra de sua dificuldade, depois de quase cem de anos de governos de partidos seculares, é hoje governada por um partido islâmico moderado, o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP). Este fato é evocado pelos partidos islâmicos “moderados” dos países da Primavera Árabe como um “modelo”. As coisas, porém, não são o que parecem à primeira vista. Para começar, o AKP não se moderou sozinho, ou por decisão ou vontade própria. Ele é, na verdade, uma dissidência do Partido da Virtude (PV).


O PV não tem como adjetivo definidor ser moderado ou imoderado, mas islâmico. Por definição, um partido islâmico tem um projeto de poder islâmico (assim como um partido comunista tem, originalmente, um projeto de poder comunista), que pode ser resumido pela imposição de normas islamicamente corretas à política, à sociedade e ao Estado. O PV foi historicamente impedido de participar de eleições na Turquia até que, em 2001, o atual primeiro-ministro turco, Recep Erdogan, deixou-o para fundar o moderado sem aspas AKP. Isto significou aceitar explicitamente o estatuto secular do Estado turco, assim como a alternância do poder e o respeito aos adversários políticos, ou seja, respeitar os princípios históricos de uma república laica.

O Império Otomano (origem da atual República da Turquia), depois de um longo período de lenta decadência, afinal se desfez ou foi desfeito após sua derrota na Primeira Guerra Mundial, na qual se aliara à Alemanha. A própria existência de qualquer estado turco ficou então em suspenso – até a reação chefiada pelo coronel Mustafá Kemal Ataturk, líder da Revolução Turca de 1919 e fundador, em seu rastro, da República atual.

Portugal já foi um império. Também a Espanha, a Rússia e, mais recentemente, a Inglaterra. Porém o mais correto seria dizer que esses países tiveram um império. Ao perderem suas colônias, voltaram, de certa forma, a ser o que haviam sido antes de conquistá-las. O Império Otomano era diferente. Não houve uma Turquia que depois conquistou um império. Houve, primeiro, o império turco, nascido da lenta expansão militar de um pequeno núcleo tribal. Esse núcleo tribal, de cultura centro-asiática, era originário da região do atual Turcomenistão, e fizera parte das várias levas de invasores nômades que, historicamente, se deslocavam do centro da Ásia para o oeste, como mongóis e hunos. Essa tribo turca em particular, cujo líder se chamava Osman, ou Otman, e daí o seu nome, seguira o avanço árabe na direção do Império Bizantino, estabelecendo-se afinal na Anatólia em torno do ano 900. Nos séculos seguintes, os turco-otomanos incorporariam regiões e estruturas – físicas e políticas – de antigos estados árabes, assim como do Império Bizantino, incluindo sua própria capital, Constantinopla. Quando o Império Otomano afinal se desfez, no início do século XX, não havia um antigo centro nacional a preservar, ou para o qual retornar, como havia, no centro do Império Britânico, a Inglaterra. Para haver uma Turquia depois do fim do Império Otomano, era preciso criá-la.

 Na lista dos maiores estadistas do século XX, Roosevelt e Churchill têm um lugar natural por sua vitória na Segunda Guerra Mundial. Porém há outra lista, não menor do que a primeira, apenas diferente, ou seja, não a dos grandes líderes político-militares, mas a dos grandes construtores de nações, em que se destacam Gandhi e Mandela. E na qual o primeiro lugar, o de maior estadista do século XX em sua acepção mais ampla, deveria caber a um coronel turco, Kemal Ataturk, o criador, no sentido mais puro da palavra, da República da Turquia a partir dos escombros do Império Otomano.

Ataturk foi um déspota esclarecido, o último e o maior deles, na tradição e na linhagem de Pedro, o Grande e de Catarina, a Grande, na Rússia, ou do marquês de Pombal em Portugal. Se Pombal chegou a proibir a Ordem de Jesus, ou seja, os jesuítas, Ataturk foi mais longe: pretendeu eliminar o islã, não da cultura turca, mas da cultura pública turca, levando-o então a se tornar uma questão privada de cada indivíduo, como nas modernas sociedades laicas. Quem sai às ruas nas cidades modernas não é um judeu, um cristão, um budista ou um ateu, mas um cidadão que pode ser ateu, budista, cristão ou judeu, e tem todos os direitos e deveres de um cidadão, não de um judeu, de um cristão, de um budista ou de um ateu. Não apenas o Estado deve ser separado da religião, como a religião deve ser separada da esfera social comum, regida pelas leis igualitárias do Estado democrático. Ataturk o considerava necessário como uma das etapas principais, senão a principal, na construção do novo país, se ele quisesse escapar do destino dissolvente do antigo Império Otomano. Maior líder militar turco moderno e pai-fundador da República (ataturk significa “pai dos turcos”), ele talvez soubesse o que estava fazendo. E dizendo:
 


"Afirma-se que a unidade religiosa é um fator na formação das nações. No entanto, vemos o oposto na nação turca. Os turcos eram uma grande nação antes de adotaram o islã. Essa religião não ajudou os árabes, iranianos, egípcios e outros a se unirem aos turcos para formar uma nação. Ao contrário, ela enfraqueceu as relações nacionais turcas, e anestesiou os sentimentos e o entusiasmo nacionais turcos."

[2]

"Estamos tentando não misturar assuntos religiosos com os negócios da nação e do Estado, e evitando ações reacionárias baseadas em más intenções."
[3]

"Não consideramos nossos princípios como dogmas contidos em livros vindos do céu. Nossa inspiração vem não do céu, ou de um mundo invisível, mas diretamente da vida."
[4]

"Temos que ser independentes do ponto de vista da religião."
[5]

"A humanidade é feita de dois sexos, homem e mulher. É possível que um povo se desenvolva pelo desenvolvimento de apenas uma de suas partes enquanto a outra parte é ignorada?"[6]



Muito antes da França, Ataturk proibiu o véu feminino. Como o marquês de Pombal proibiu a ordem dos jesuítas, ele fechou as ordens de dervixes, espécies de mulás místicos. Também fechou as escolas religiosas, as madrassas, onde se estudava o Corão – e onde tudo o que se estudava era o Corão. Ao mesmo tempo, instituiu o ensino universal e laico. Mudou o alfabeto turco, que utilizava caracteres árabes, para um novo alfabeto, baseado nos caracteres latinos. Como Lutero e o rei James da Inglaterra traduziram a Bíblia, respectivamente, para o alemão e o inglês, Ataturk encomendou, pela primeira vez, a tradução do Corão do árabe para o turco, a fim de que os fiéis não ficassem reféns das interpretações dos mulás. Determinou o domingo como dia de descanso, em lugar da sexta-feira. Anulou a legislação religiosa, incluindo as leis sobre casamento, divórcio e herança, baseadas na lei islâmica, a shariá, e instituiu uma legislação civil. Proibiu a poligamia. Substituiu o calendário muçulmano pelo gregoriano. Fechou inúmeras mesquitas, e transformou a principal delas, a de Sófia, em Istambul, em um museu. A lista é interminável. Entre outras coisas, Ataturk também aboliu o califado.

O Império Otomano era, ao mesmo tempo, o sultanato, o império do sultão turco, e o califado, pois o sultão era também o califa, o sucessor de Maomé e, portanto, o “Defensor do islã” e sua máxima autoridade religiosa. Algo como se o imperador romano fosse simultaneamente o papa. Pois Ataturk, além de destituir e exilar o último sultão, acabou com o papado – digo, com o califado.

Ataturk não criou apenas um novo estado, a Turquia, dos escombros do Império Otomano. Também criou uma república laica e institucionalmente moderna no lugar de um estado religioso. Além disso, e acima de tudo, tentou mudar e remoldar a cultura do país, a fim de que a racionalidade e o empirismo modernos substituíssem, na vida pública, jurídica e política, as crenças e as práticas religiosas. Ele foi o único reformador a fazê-lo com relativo sucesso em todo o mundo muçulmano.

 Mas as reformas modernizantes e democratizantes de Ataturk foram, paradoxalmente, implementadas à força – então necessária para mudar tanto as instituições quanto as práticas e as mentalidades, e assim criar tanto um novo país quanto uma sociedade civil moderna. Daí a referida falácia dos islâmicos “moderados” que evocam o “modelo turco” a fim de defender sua subida ao poder nos países da Primavera Árabe. Pois se referem ao fato de a Turquia ser hoje governada por um partido islâmico e manter sua república democrática. Acontece que essa democracia não foi construída por um partido islâmico no poder, mas por forças políticas anti-islâmicas lideradas por Ataturk (se não bastasse, o partido islâmico moderado hoje no poder na Turquia vem, na verdade, tentando paulatina mas consistentemente minar o laicismo do Estado, conforme reiteradas manifestações de importantes intelectuais turcos na imprensa internacional, que nossa mídia provinciana solenemente ignora).

Enfim, o modelo turco simplesmente não pode ser hoje copiado, pois seria impraticável e impalatável. O famoso modelo turco, portanto, não é modelo nenhum para nada.
[7]


9 A grande cláusula


É preciso reconhecer, corajosa ou, ao menos, honestamente, que não se pode servir igualmente a dois amos. O islã como religião privada de um indivíduo ou de um bilhão é um direito fundamental, o da liberdade religiosa. Mas o islã como projeto político e social, ou como “referência” de um projeto social e político, como pretendem os partidos islâmicos “moderados”, é uma falácia, uma mentira ou uma contradição. A própria liberdade religiosa pressupõe a completa separação entre Estado e Igreja, pois apenas um Estado – e um governo – laico não está comprometido com nenhuma crença e pode, portanto, garantir que nenhuma crença tente se impor. Mas não é apenas a liberdade religiosa que depende do Estado – e do governo – laico. As liberdades civis em geral e as liberdades políticas em particular também, pois um projeto político religioso pressupõe a imposição de práticas e regras religiosas grupais. O islã como projeto político é, de fato, incompatível com a moderna democracia representativa. As patéticas esperanças de que a autoproclamada “moderação” de partidos islâmicos resolva milagrosamente o problema são apenas esperanças patéticas.

Comentei acima que o Partido da Virtude turco, historicamente o mais importante partido islâmico do país, era historicamente impedido de participar de eleições, forçando afinal um de seus líderes, o atual primeiro-ministro turco, Recep Erdogan, a abandoná-lo e fundar um novo partido, o moderado sem aspas AKP. Sem aspas, pois obrigado a adequar seu estatuto às cláusulas republicanas da Constituição turca (eis, aliás, mais uma diferença fundamental da situação turca, que torna o modelo irreprodutível: há uma Constituição turca que é laica e republicana, à qual todos os partidos, notadamente os islâmicos, têm de se submeter; nos países da Primavera Árabe, ao contrário, novos Congressos constituintes estão sendo eleitos, com a participação de partidos islâmicos: portanto, com grande possibilidade de que nasçam Estados nem republicanos nem laicos, mas islâmicos; o que isso tem a ver como o modelo turco?). Mas se o Partido da Virtude turco era proibido constitucionalmente por certas cláusulas de participar de eleições, como pode ser esta uma Constituição republicana, ou essa uma democracia representativa?

 Trata-se de um aparente paradoxo, semelhante ao paradoxo aparente que contrapõe a tolerância à intolerância. Como disse o filósofo Mário Bunge, ser tolerante implica ser intolerante com a intolerância, caso contrário, a tolerância com a intolerância resultaria na vigência da última, logo, na morte ou no enfraquecimento da tolerância. Do mesmo modo, uma Constituição republicana e democrática deve prever a necessária defesa da República e da democracia, logo, impedir que forças antirrepublicanas e antidemocráticas possam ameaçá-la, principalmente pelas próprias vias do governo representativo. Um exemplo histórico bastaria: Hitler foi eleito.

 Em 1945, a própria razão de ser da criação da ONU (ou seja, o nazismo e a Segunda Guerra Mundial), fez com que se pensasse, então, numa cláusula democrática, segundo a qual apenas democracias poderiam integrar a nova instituição internacional. Uma rápida olhada no mapa-mundi, porém, obrigou os redatores da Carta das Nações Unidas a abandonar a ideia dessa cláusula. Pois, se incluída, a maior parte dos países ficaria de fora. Daí a ONU não ter uma cláusula democrática. Mas a Organização dos Estados Americanos, a OEA, tem. Também a possui a Alemanha. Enquanto a França possui uma cláusula de defesa do laicismo do Estado.

 No caso alemão, a cláusula em questão impede partidos que professem ou defendam a ideologia nazista de participar de eleições, ou permite que seus eleitos sejam cassados caso se demonstre que seu partido o faça. Sim, isso impede que uma parte do eleitorado alemão, aquela que gostaria de votar em nazistas, possa fazê-lo. Mas isso não limita o caráter democrático da Constituição alemã, ao contrário, garante e defende esse caráter. No caso francês, a Constituição obriga o Estado a defender o caráter laico da República francesa. Por fim, em inúmeros países há cláusulas numéricas, pelas quais um partido precisa obter um percentual mínimo de votos a fim de que seus representantes possam tomar posse. Neste caso, os votos dados aos partidos que não obtêm esse percentual são automaticamente anulados, assim como é anulado o exercício do voto de quem os escolheu. Isso elimina a representatividade política desses eleitores, mas, em compensação, aumenta a representatividade geral dos partidos no Parlamento, o que não pode ser considerado antidemocrático. Checks and balances.

O caminho para a democracia muçulmana não é o modelo turco, que nada tem de modelar. Muito menos a democracia automática e, por isso mesmo, ilusória ou falaciosa, dos países da Primavera Árabe, que sem sociedades civis robustas e, principalmente, sem Constituições que possam defender o governo representativo, não podem constituir, por mágica ou meras declarações de boas intenções, governos representativos e democracias modernas, que devem ser necessariamente laicas, além de constitucionalmente autopreserváveis. O caminho para a democracia muçulmana, ou seja, para a implantação e a manutenção da democracia representativa nos países muçulmanos, é o modelo argelino.


10 O modelo argelino

 
Os representantes políticos da parte nacionalista, secularista e republicana da sociedade, respaldados por um exército nacionalista e secular, comandam o processo de implementação de uma república laica, incluindo a redação de uma Constituição que sintetize e incorpore cláusulas constitucionais como as alemã e francesa (que não deixa de ser, em essência, a mesma da Constituição turca; eis, afinal, o verdadeiro campo de pertinência do modelo turco). É o que vem acontecendo na Argélia desde 1995, com o fim da guerra civil, decorrente do golpe republicano dado pelo exército secular e nacionalista e pela histórica Frente de Libertação Nacional contra a eleição da Frente Islâmica de Salvação. O erro da FLN foi decretar da noite para o dia, depois de décadas de regime de partido único, uma democracia “geral e irrestrita”, portanto, não restringida sequer por mecanismos legais de defesa da própria democracia nascente. Uma democracia ideal e, portanto, falsa, além de frágil, pois falta de mecanismos de combate à intolerância e ao antidemocratismo nas esferas política e institucional. O resultado foi a quase eleição da FIS e, assim, a quase extinção da democracia representativa argelina, que seria, conforme os honestos estatutos da própria FIS, substituída por uma teocracia. Como a teocracia não é uma forma de governo, mas um modo de organização do Estado, a eleição da FIS significaria um golpe fatal na República argelina. Daí a situação paradoxal de o exército, sob orientação política da FLN, abortar uma eleição democrática a fim de defender a República (pois poderia agora, como de fato já feito, organizar novas eleições protegidas por cláusulas democráticas).

Os aparentes paradoxos das cláusulas democráticas revelam-se afinal menos paradoxais. E as únicas soluções políticas, realistas e factíveis caso se queira sair do terreno escorregadio da aposta histórica, bem como do instável atoleiro com que as frias chuvas do inverno islâmico ameaçam as frágeis florações da Primeira Árabe.

 



[1] Esta seção contou com os subsídios inestimáveis da profa. dra. Miriam Dolhnikoff, do Departamento de História da USP, do curso de Relações Internacionais (RI) e do CEBRAP.
[2] Yurttaslik Bilgileri, Yenigun Haber Ajansi (1997), p. 18 (acessível em http://en.wikiquote.org/wiki/Mustafa_Kemal_Atat%C3%BCrk [tradução de minha autoria]).
[4] “Statement” (1 November 1937), as quoted in Atatürk: The Biography of the founder of Modern Turkey (2002), by Andrew Mango (acessível em http://en.wikiquote.org/wiki/Mustafa_Kemal_Atat%C3%BCrk).
[5] Acessível em http://tekadamdevrimi.com/tekadamdevrimi/tad_ingilizce/tad_ingilizce_02.htm.
[7] A maior parte desta seção é parte integrante do capítulo “Islamismo versus kemalismo”, do meu livro inédito As asperezas da crença – a religião no mundo contemporâneo.

 

2 comentários:

Anónimo disse...

Saúdo a volta de Dolhnikoff, um excelente e informado, e lúcido, articulista. Muito interessantes, também, os seus textos na SIBILA brasileira, nomeadamente um sobre a resignação de Joseph Ratzinger, pontifex emeritus.

ns

Joaquim Simões disse...

Bom regresso este! Uma análise bastante clara, a todos os níveis,do que está em jogo e das respectivas regras e peões.
Abraço.