(...)
Louçãs
e Fazendas já não são adolescentes, já perderam esse trunfo eleitoral da
rebeldia juvenil incitadora das “massas”. E o que propõem, por mais que alteiem
a voz, esbracejem e se contorçam histrionicamente na Assembleia ou se
multipliquem em exemplos de propaganda política criativa e anticonvencional,
cada vez menos encontra audiência e receptividade. Passados os primeiros anos
de fulgor e crescimento, começam lentamente a declinar e afundar-se na
inocuidade. Mas há uma parte dessa “plêiade” da intelectualidade revolucionária
(por força dos tempos, cada vez menos atacada pelo quadradismo mental do
“revisionista” PC) cuja influência — embora quase invisível, na medida em que
se confunde com a luta pela observação dos três princípios enformadores da civilização
ocidental que referi e, por tal, permeia e se insinua naquilo que a ela própria
se opõe — é maior e mais representativa, ao mesmo tempo, do que resta da
esquerda e daquilo em que ela se tornou: falo do movimento Política XXI.
Desfeita
a sovietização no Leste europeu; desmembrada a URSS; extinto o Pacto de
Varsóvia; a crista cubana à banda; desvendada a miséria dos territórios em que
se aquartelava o socialismo; Pequim a todo vapor, mas agora graças à sua
efectiva rendição ideológica disfarçada de admissão de um “segundo sistema”… A
esquerda da mentira disfarçada com a farronca, acossada, pouco mais pôde fazer,
até hoje, do que defender o vão de escada político e ideológico a que ficou
reduzida. Com isso, porém, fez avançar num movimento — só na aparência —
paradoxal a esquerda que sempre procurara menosprezar e aviltar: a esquerda dos
direitos e liberdades das minorias culturais, do universalismo humanista, do
multiculturalismo como tarefa, etc., etc., gerada pelos sixties. Ser a favor da revolução sexual e da liberalização
de costumes, ser respeitador das restantes culturas, costumes e religiões e
questionar ou contestar, a partir delas o que fosse ocidental, ser
militantemente (na rua ou no café, no sofá ou na cama) pelo amor e pela paz no
mundo era, nessa época”, para quase todos, ser “de esquerda” ou, pelo menos,
“progressista”. Uma “outra esquerda”, entenda-se, expressão que se mantém por
deformação das vias do pensamento consequentes ao domínio da vulgata conceptual
marxista.
Essa
esquerda, contudo, institucionalizara-se já, note-se, nos países nórdicos e
anglo-saxónicos e, em geral, na Europa ocidental e nos USA, sobretudo no plano
da educação. Foi nesta que os seus teóricos estabeleceram os seus
quartéis-generais e criaram os seus ninhos; educar para o Homem Novo, minar o
“sistema” pondo a escola ao serviço da contestação foi a estratégia seguida. Do
mesmo modo que Marx e Engels, numa época em que lhes era impossível utilizar a
imprensa, tanto por falta de meios financeiros e de distribuição como de
oportunidades, escolheram as associações populares para disseminar a “fé
comunista”, os socialistas de horizontes alargados viraram-se para o ensino,
onde mais facilmente pregaram e impuseram a educação “humanista”, virada para
os amarfanhados “aprendentes”, alvos de contínua agressão opressiva na sua
aprendizagem e desejo de saber. As preocupações democráticas do Ocidente
constituíram assim o terreno onde, insinuando questões sofisticamente ligadas à
liberdade individual, essa mesma democracia tem vindo a ser atacada a pretexto
de melhor a consolidar e alargar por meios pedagógicos. E, o que é pior,
frequentemente com as melhores intenções por parte dos eternos “idiotas úteis”
de serviço.
Os
filhos e os netos do Dr. Benjamin Spock (o tal que hoje se sabe, por portas
travessas, arrear nos alunos à surrelfa, de vez em quando) tornaram-se assim a
intelectualidade arauta dos três princípios de fé da cultura ocidental que
procurei evidenciar, oficiada por um aparelho conceptual de raiz marxista
aplicado às questões trazidas ao Ocidente por um desenvolvimento
técnico-científico vertiginoso, sem paralelo na História humana, e respectivas
mutações económicas e de dinâmica social. Chegara a hora da entrada em cena e
do protagonismo da nova esquerda, redentora dos pobres e dos oprimidos,
humanista, tolerante: chegara a hora do “politicamente correcto”. O seu
mimetismo com a cultura ocidental é de tal maneira eficaz que nem os comunistas
de antanho conseguiram furtar-se a vergar-se e obedecer à sua influência.
Louçãs
e Fazendas podem desaparecer, portanto, que Política XXI se dissemina por todo
o lado, mesmo sem nome mas com nomes, pelo PS, pelo PSD e até pelo CDS. Não
precisa sequer de designação para se manter e sobreviver — sempre, é claro, em
eternas guerras de poder e de prestígio como é típico de qualquer organização
que, como o marxismo, tenha o modelo de seita. Mantém-se e sobrevive porque
venceu a democracia, envenenando-a com as suas próprias armas, garantiu
audiência e militância porque lhe formatou a mentalidade e os instrumentos do
pensar através da escola, da comunicação social, da cultura. A esquerda já não
se acoita agora nas pretensas conquistas económicas, no incomparável
desenvolvimento e na fuga dos proletários ao jugo capitalista. A esquerda caminha
agora na própria origem com que justifica a sua existência: a da abertura de
novas vias que levem ao aparecimento do Homem Novo sem necessidade de qualquer
golpe armado — embora, em última instância, não o rejeite. Já não premedita,
acaba por ser quase sincera. Tornou-se "natural" porque é cultural.
E,
para isso, basta-lhe — para além do não abrandamento do seu discurso
tradicional sobre os crimes da burguesia, é claro — passar a defender cada vez
mais os direitos das minorias reveladas ou formadas no âmbito das
transformações do Ocidente, tratando a excepção no mesmo nível da regra e, no
seu discurso, transformando esta numa quase excepção (sem esquecer, o resto do
mundo, quase todo ele transformado, da China ao Médio Oriente, passando pela
África e pela América Central e do Sul, numa espécie de enorme minoria étnica).
Por exemplo, fazendo perspectivar a individualidade sexual como um papel
induzido socialmente ou, de outra maneira: eliminando a noção de indivíduo
dotado de estrutura e vontade construtora de si e substituindo-a pela do ser
humano enquanto mero produto e joguete de forças colectivas a quem, com as
melhores intenções, é preciso desbloquear a mente para outros horizontes.
Lembro-me sempre, a este propósito, dos costumes de uma tribo da Papuásia, Nova
Guiné, referidos pelo Professor José Gabriel Pereira Bastos, do curso de
Antropologia da Universidade Nova de Lisboa, para grande choque dos alunos
(alguns saíam da sala). Nessa tribo, os homens vivem à parte das mulheres; e
raptam os rapazes à medida que eles atingem uma determinada idade, para os
levarem para junto de si, justificando-o com a crença de que, para se tornarem
adultos fortes e saudáveis, terão que beber bastante esperma.
Mas
não só. Na sua ânsia de reinar, a pretexto da libertação de tudo o que possa
cheirar ou ser apresentado como opressão com base no preconceito cultural ou
outro, aceita discutir, com ar sério e quase sempre composto, coisas como a
existência de uma cultura própria de cegos, de surdos ou de coxos, mistificando
e relativizando, desse modo, a noção de cultura e dando azo a que possa vir a
serem cometidos crimes como o que este casal de lésbicas pretende fazer.
Ultrapassa o querer transformar em normalidade o que é excepção, por apelo à
dignidade desta: chega a querer dar estatuto de honestidade à discussão sobre
se um acto hediondo é, afinal, um acto belo; se um egoísmo criminoso é, antes
do mais, um benfeitoria (sem esquecer no que tem resultado a justiça
“humanista” e de quanta injustiça, violência e criminosos impunes dela têm
resultado). O “humanismo” desta nova esquerda traduz-se num banditismo
ideológico instaurador da maior ditadura que a Humanidade poderá vir a
conhecer, imensamente superior à que os nazis chegaram a instaurar na Alemanha.
Para
terminar, Carmo da Rosa, um apontamento. Que outrem haverá mais paradigmático
dessa “nova esquerda” e da sua vitória do que o dirigente máximo do país onde
Spock pontificou, do país do “politicamente correcto” instituído até à náusea?
Que exemplo maior de hipocrisia e arrogância assente em contradições
demagógicas do que o sr. Barack Obama? Obama é a típica esquerda moderna, a
esquerda “de sucesso” que ascende ao poder melifluamente como desejo de justiça
e liberdade para as minorias (não interessa quais) e que se apoia, não somente
nas existentes mas ainda descobrindo outras, novas, nem que para isso, tenha
que incentivar a convicção da sua existência. A esquerda que é permissiva para
melhor dividir, a pretexto de unir, e assim reinar.
Certamente
que Obama não conhecerá este casal de lésbicas surdas (ou já teremos que lhes
chamar “inauditivas”?) nem muitas outras existências minoritárias. Ele é,
porém, o “progressista” à sombra do qual a esquerda — a“esquerda esclarecida”,
entenda-se — cria e consolida o seu domínio. E que, tal como todos os
colectivistas da História, tem agido pragmaticamente “à direita”, sempre que a
realidade o faz engolir, sem pestanejar, as convicções ideológicas e as medidas
a tomar que propagandeou para chegar ao poder — por cá, houve quem, anos atrás,
metesse “o socialismo na gaveta”. Porque Obama não é apenas um agente dessa
esquerda: isso é, uma vez mais, engolir o messianismo marxista, na sua
afirmação de que as condições sociais hão-de gerar sempre alguém que as
represente e efective, de que a vontade do indivíduo não é mais do que
expressão camuflada do inconsciente colectivo. Não. Obama é um alguém,
possuidor de uma vontade e de um interesse próprios; como qualquer de nós, não
é um agente meramente passivo, é também activo, pretendeu alcançar o estatuto a
que chegou. Obama é, como todo o ser humano, dotado de livre arbítrio e,
portanto, responsável.
Ora
um dos pontos de conflito que tem havido entre si e o Rio d’Oiro é precisamente
o grau de envolvimento de Obama em desmandos vários, permissividade incluída. E
argumenta com exemplos de políticos de direita que sancionam e, por vezes, até
dão respeitabilidade a essa permissividade. E isso, Carmo da Rosa, é não
perceber o que está em jogo.
É
claro que se quebraram tabus disparatados e inaceitáveis e que as pessoas que
vivem nas sociedades ocidentais onde isso sucedeu passaram a viver já livres
deles. Mas por isso mesmo é que a direita de hoje também não é já a direita
anteriormente dominante, os seus horizontes alargaram-se à medida das transformações
sociais. A direita puritana é folclore, a direita de hoje já se “debocha” com
naturalidade e descontracção, tem uma concepção de vida muitíssimo mais aberta.
Não usa essa autolibertação insidiosamente como arma política, não manipula as
pessoas no que lhes é mais essencial e lhes tempera intimamente a vida para
cimentar o seu domínio “teológico”. Argumentar com a existência de líderes
liberais ou de direita que, a esse nível (e não só), têm o mesmo comportamento
de Obama ou da esquerda “moderna” para afirmar que tal tipo de coisas nada
significa é cair no engodo que a esquerda e Obama estenderam ao Ocidente
crédulo e incauto, é, como dizia o meu paizinho, “o mesmo que comparar uma vaca
com um molho de salsa”.
É a
diferença entre assumir novas formas de viver e utilizá-las como arma,
transformando-as na teologia de novos salvadores, que mudam a sua adopção
lenta, natural e espontânea em versículos jurídico-legais moldadores dos
Amanhãs por eles visionados como ninguém e de que serão eternos oficiadores. Em
Portugal, Obama não está no poder, mas temos na universidade Boaventura de
Sousa Santos, do alto de cuja fronte nos contemplam os séculos vindouros.
Esteja,
portanto, descansado. Quando o Rio d’Oiro, o Lidador ou eu próprio, abardinamos
com o Obama ou o apontamos directamente, não é por embirração, para fazermos
reinar a injustiça cega de um qualquer sectarismo ou para achincalharmos alarve
(deverei pedir desculpa por utilizar uma palavra, que, na sua etimologia,
significa “árabe”?) ou gratuitamente. É porque Obama é, de facto, alguém muito
perigoso para o Ocidente e para a presente e futura luta mundial pela
liberdade. Não apenas pelo que faz nem pelo que diz, mas pelo que diz que faz e
porque o faz. Porque, parafraseando Baudelaire, quando dizia que a maior
vitória do diabo é ter-nos convencido de que não existe, a maior vitória da
“esquerda iluminada”, do “progressismo” é ter-nos convencido de que não é
(conscientemente ou inconscientemente) esquerda, mas apenas o ideário do
cidadão de uma sociedade “verdadeiramente humana”.
Se
eu quisesse sintetizar o essencial do que aqui fui pretendendo esclarecer,
diria que os três princípios culturais que apontei são, afinal, como que o
horizonte para o qual e pelo qual se moveu e se move a cultura ocidental. E sob
esse aspecto, mais do que necessários, são para ela vitais. Mas que quando
alguns determinam, por vaidade ou por insegurança sobre o que possa estar mais
além do que conseguiram ver — o que constitui esse horizonte —, fixando-o essa
sua visão como a Visão, isso torna-o, pelo contrário, letal, porque já nada
mais há para descobrir do que o que é sabido, nada para fazer senão ruminar o
permitido sob a capa da total ou quase total permissão, sob a guarda do juízo
do pastor omnisciente. E isto engloba quer os antigos paraísos socialistas —
tanto do ponto de vista da economia como do da cultura — quer as disposições
legais introduzidas pela esquerda “moderna”. E também os socialismos rivais dos
marxistas, como o nazismo e o fascismo.
Termino
esta minha resposta, que se alongou ao tornar-se, afinal, já menos para si do
que a-pretexto-de-si. Não sei se a ml voltará como o fez — inesperada, mas
atenta e oportunamente — ao fim de tanto tempo, a ressurgir das sombras, num
momento de aparente maior crispação entre alguns de nós, para falar de um
blogue ridículo com ridículas posições de ridículos colaboradores. Não calculo
para que se deu a senhora, de súbito, ao trabalho ou ao desfastio: mas,
confesso, também não estou por aí além desejoso de o saber. De qualquer modo,
não disporei proximamente de muitas oportunidades para responder seja a quem
for. É que não tendo, como o Carmo da Rosa, armários para acabar de pintar,
estou, no entanto, metido noutras tarefas que, além de me tomarem bastante
tempo, me dão um gozo do caraças. E que nada têm a ver com política.
Felizmente.
Até
logo.
P.S.
- A gravura que encima o post fica como o sinal da minha homenagem às cidadãs
lésbicas e bissexuais de todo o mundo.
1 comentário:
Foi uma notável análise aquela a que o josé gonçalo meteu ombros. Conseguiu acertar. Mas agora escreva-nos sobre outras coisas, pois a Carmo já deve estar informada e poderá reflectir.
Porque não efectua uma análise sobre os meandros ciclónicos da bola? A sugestão aqui fica.
Ivo
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