Henri Matisse, La danse
(...)
A
Mulher, tal como o Homem, como se sabe, não existe neste mundo. Quando muito,
padrões com uma raiz comum, por sua vez detectáveis em conjuntos de raízes
secundárias — todas elas, afinal, individualizáveis. Descontando os casos
claramente patológicos, há, nesse plano, diferentes tipos de indivíduos, homens
e mulheres: os sexualmente mais activos do que os outros; os mais espontâneos
na exteriorização dos seus afectos ou apetites do que os outros; os que
diversificam mais a prática com que os concretizam e na utilização do seu corpo
do que os outros. E um dos enormes problemas que hoje existe em termos de
coesão social, porque aliado à maior liberdade individual e a consequente menor
pressão social, é precisamente o facto de a noção de família não acompanhar
essa mesma realidade inegável e soberana, continuando a sua constituição a ser
regulada e controlada pelo Estado, seja em nome de uma moralidade resultante do
preconceito, da ignorância ou do receio, seja por meras questões de
fiscalidade. Se é imprescindível que a família constitua o garante de uma sã
continuidade da humanidade futura é necessário reinventá-la, sem, no entanto,
ao mesmo tempo poder por um momento esquecer os elementos que tornam o “átomo”
familiar no local por excelência de um desenvolvimento equilibrado dos membros
da espécie. E isso implica a presença imprescindível de membros de sexos
diferenciados, sem o que a escolha de modelos não funciona com a necessária
normalidade. Porque os padrões existem mesmo, não são apenas de natureza cultural.
Um
dos erros dos sixties foi inferir que, como a
maioria se encontrava impedida de expor livremente a dimensão da sua
sexualidade (subliminarmente identificada com a imagem da sexualidade
abrutalhada com que a “ciência” positivista quis indrominar até os
animaizinhos) todos estávamos reprimidos sexualmente e que todos desejávamos a
mesma medida de actividade sexual. Quem não aceitasse um convite estaria
certamente com bloqueios na cabecinha devido à influência da ssciedade. Essa
atitude ajudou, de facto, muita gente a assumir melhor a sua vida, mas como
nada é perfeito, ajudou também a gerar mais confusão. Nas mulheres como nos
homens. É o problema da esquerda, mesmo da mais liberal, o do pronto-a-vestir.
Tanto mais desejariam que o mundo fosse e se comportasse à sua medida, tanto
mais absolutizam o que não é absolutizável.
Em
si mesmo você encontra esses resquícios, quando, por exemplo, ainda
recentemente, num comentário que fez já não me lembro de a quê, dizia que há
(como, aliás, toda a gente saberá desde o tempo das cavernas, nisso não deu
nenhuma novidade) raparigas que se fazem aos homens mais velhos; mas que as que
não o fazem — sugeria — era porque ainda tinham macaquinhos no sótão. Meu
caro, se há mulheres, jovens ou menos jovens, que gostam de homens mais velhos,
há outras a quem o pezinho não foge para aí — e você tem que o aceitar. Em
primeiro lugar, porque não cabem na vertente erótica que lhes agrada e as
motiva, preferem o vigor à experiência, que esta logo se ganha; em segundo
lugar, porque, ao contrário das outras, o sabor da pele menos fresca ou o ranço
que o tabaco e o álcool acrescentaram a essa menor frescura de pele e de
hálito, por exemplo, as desmotivam; em terceiro lugar, porque a visão de um par
de bochechas, agora flácidas, balouçando por cima do seu rosto, não é
propriamente uma visão que ajude ao clímax — e nem sempre lhes apetece estar
por cima; em quarto lugar… e por aí fora. O mesmo para os rapazes, é claro.
Descontando estasnuances, confesso-lhe que, pelo que me toca, as
mulheres abaixo da quarta década, com raras excepções, não me motivam por aí
além: faz-lhes falta a experiência necessária a uma dimensão de erotismo que só
as vivências de um maior tempo de curtição pela vida proporcionam. Diria quase,
como não sei quem que outro não sei quem citava noutro dia: mulheres, só com
certificado de menopausa. Mas já cá volto, à questão do erotismo.
Continuando:
há poucos dias, fazendo zapping,
apanhei num telejornal qualquer, creio que o da TVI, uma peça sobre a crescente
expansão do modo de vida swinger em Portugal e os
problemas psicológicos que algumas mulheres apresentavam devido a ele. A
sexóloga de serviço da comunicação social cá do jardim, Marta Crawford, a quem
o jornalista perguntou o que sabia do assunto, respondeu: “Eu acho que sim, que
traz problemas, pelo menos esses são os casos que me chegam. Mas o facto é que
está em expansão, portanto parece que as pessoas não se sentirão tão mal,
senão…”. Por outro lado, tempos atrás, novamente fazendozapping, desta
vez na SIC Radical, uma habitante do Bunny Ranch, respondeu à pergunta do
entrevistador sobre se as raparigas que ali estavam se mantinham lá a
contra-gosto, respondeu: “Sabes, isto é como em todas as profissões: quem não
se sente bem com o que faz, anda contrariado, acaba por ir-se embora, mais
tarde ou mais cedo…”. A enfermagem não é vocação de toda a gente, mas só de
alguns, que o diga a enfermeira-chefe Nightingale. Por mim, nada tenho contra a
diversidade desde que ela não seja resultante do arbítrio de alguém sobre
outrem.
A
propósito, já reparou que uma das fantasias mais populares entre os clientes
das prostitutas é vê-las vestidas de enfermeiras? Pelo menos, sugerem-no muitos
dos anúncios “eróticos” dos nossos jornais diários. Não é apenas a Grande Mãe
da espécie, é a mulher que cura, pelo carinho, aquilo que está subjacente na
fantasia. E é mais: é algo que Georges Bataille muito bem ressalta num dos
contos que li numa edição em livro de bolso, que juntava Madame
Ewarda e Histoire de l’oeil a
um outro, de cujo título não me recordo. Como se o doente no seu leito
parecesse ter um efeito desinibidor e catalisador da pulsão sexual, como se o
instinto de sobrevivência, de “persistência no ser”, como diria Espinosa, se
levantasse contra a morte não só da parte dele como dos que dele estão
próximos. É verdade. Soube-o, ainda criança, quando estive perto de morrer. E
isso leva-me à questão — vital! — do erotismo.
Não
foi arbitrariamente que os historiadores relacionaram o início da História da
humanidade com a presença de monumentos funerários. O animal assusta-se com a
morte, não se espanta porque não tem instrumentos mentais para reflectir sobre
ela. Um primata, como o chimpanzé, é capaz de operar sobre os dados fornecidos
com um nível de eficácia igual à de uma criança entre os seis e os dez anos,
mas é incapaz de um da auto-reflexão a que se liga a linguagem humana desde o
ano e meio de idade. Apesar de ter um aparelho vocal que lhe permitiria falar,
o animal não fala, sinaliza situações, tal como um trovão é um aviso de que
estamos em presença de uma trovoada. A noção de tempo é-lhe estranha: um cão é
capaz de se aperceber do ritmo e, por isso, continuará a ir mecanicamente
esperar o dono à mesma hora durante anos, após a sua morte; mas não se
conseguirá fazê-lo compreender ordens do tipo “daqui a dois dias, vais
buscar-me os sapatos” ou “amanhã, levas as ovelhas para ali”. A noção abstracta
do tempo — do ontem, do hoje e do amanhã —, isto é, a capacidade de nos
projectarmos no futuro, de nos planearmos, apenas se nos desenvolve, aliás, a
partir dos sete anos. E a capacidade de nos pormos no lugar do outro, de
imaginarmos o que sentiríamos se nos encontrássemos na pele de outrem, isso só
a partir dos onze. A capacidade de avaliarmos o prazer e a dor do outro, de nos
identificarmos com ele, ainda mais inacessível é ao animal, porque incapaz da
operação que o poria ao nível de se distanciar de si mesmo, de se pôr em causa
a si próprio.
A
necessidade que o ser humano tem de mudar sem, para isso, ser forçado pelas circunstâncias,
é resultante dessa capacidade de autoconstrução. Fazemos vários tipos de casas,
de diversíssimos padrões estéticos, independentemente das necessidades
específicas que todas elas, no seu conjunto, procuram satisfazer. Da mesma
maneira que não existe apenas um ritual de acasalamento para toda a humanidade
ou sequer para cada cultura, não existem dois de nós com os mesmos exactos
gostos e desgostos amorosos. Mas é esta mesma diversidade que acaba por
construir uma outra unidade, intrínseca à espécie humana. Espécie, note-se, que
tem a particularidade, rara no reino animal, de os atributos de chamariz sexual
estarem concentrados predominantemente na fêmea e não no macho. Uma coisa,
porém, é o ritual de acasalamento, mais padronizado enquanto, até certo ponto,
biologicamente condicionado; outra, o erotismo, que é algo muito mais
simultaneamente lato e individualizado e que permeia o acasalamento humano.
Atribuir
um significado à vida e, em geral, ao que nos acontece e fazemos, discutindo-o
e partilhando-o com os nossos semelhantes, é o que essa mesma capacidade de
viver para lá do momento e da circunstância imediatas nos permite. Fora do
tratar do preço das bananas na mercearia e do comê-las em maior ou menor
quantidade, é isso que nos transforma em homens e nos distingue dos macacos. O
erotismo assenta nisto mesmo, na capacidade de conferir significado e, logo, de
reinventar e estimular o acto amoroso numa gama quase infinita de modos. Nesse
sentido, acrescentaria eu ainda, da mesma forma que a criança humana se prepara
para a vida brincando ao faz-de-conta e, assim, ao desenvolver a imaginação,
multiplicando as soluções e as possibilidades de sucesso de vir a ter mais
prazer na vida do que dor, também o sexo se muda, no adulto, na brincadeira em que
a autoconsciência, a consciência da finitude da existência (o amor e a morte
desde sempre se ligaram estreitamente nas nossas mentes, conforme o testemunha
abundantemente a arte em geral), a necessidade de atribuição de sentido às
coisas e a capacidade de nos imaginarmos na pele alheia constituem um aspecto
fundamental do salto qualitativo (e não de mera quantidade) que a nossa
inteligência constitui em relação à restante inteligência animal. O erotismo é
o que nos torna humanos.
Podemos
encontrar erotismo em todo o lado. Matisse, um dos pintores por excelência do
erótico, confessava-se apaixonado por uma cadeira que encontrara nos mares do
Sul. E, quando nos esquecemos da moca positivista, achamos risível e amacacado
o tipo que firma o pé na parede a fim de melhor ganhar balanço para “lhes
saltar para a cueca” — lembro-me, a este propósito, de um empregado de mesa
“engatatão” e que “não perdia uma”, mas que, quando eu, em conversa, brincava
com ele por causa de um dos seus “engates” mais recentes, me dizia, entre o
irónico e o quase melindrado, que não iria “levar uma mulher para a casa de
banho, há um mínimo que se deve a uma mulher”. Até ele, meio analfabeto e, por
isso, supostamente por muitos meio-bruto, tinha essa noção do que às mulheres
se deve, de um “significado” por mais tosco que seja. F…, f… todos, mais ou
menos, homens, animais e plantas. Mas eróticos, só nós, mais nenhuns, porque só
nós saltámos da cueca para o significado — da cueca inclusive.
Sem comentários:
Enviar um comentário