Nicolau Saião, Os idiotas úteis
OS IDIOTAS ÚTEIS
Por
vezes é quase comovente ler nos periódicos, ou nos espaços interactivos, certos
textos de conspícuos comentadores, em geral imbuídos de uma filosofia de vida
que se aproxima da candura de espírito. Ou, dizendo de outra forma mais carinhosa,
da glamorosa ingenuidade que ostentam como aqueles velhos “leões das salas”, os quais, perdida a frescura da mocidade,
substituem a musculatura outrora tersa por uma elegância conseguida nas
melhores alfaiatarias.
Muitos
deles, para mostrarem que são democratas, que são isentos ou qualquer outra inanidade
que lhes abrilhanta o bestunto, perdem laudas a analisar as “motivações” desta
ou daquela figura grada dos entrepostos comunistas, com soma de pormenores que
esquecem, ou fingem que esquecem, que um militante comunista, seja de base ou
dirigente, é antes de tudo uma função. Basta ter-se lido e
ter-se olhado com olhos de ver o comportamento das internacionais marxianas e
quem as compõe e tem composto, para se perceber isto: o que os move, antes ou
depois de tudo, é deitarem abaixo o que não é deles, feito por eles ou por eles controlado.
Um comunista, seja ele escritor, cantor,
pintor, médico ou arquitecto, simples lojista ou na orla dos argentários ou
empresários de sucesso, operário ou colarinho branco, é primeiramente e acima
de tudo um militante. Ou seja, um ser do
partidão, o que poderá variar em grau mas nunca em base.
Prontos
para tudo, não perderam de vista, não perdem e nunca perderão a palavra de ordem dos
seus chefes presentes ou desaparecidos: subverter a sociedade a que chamam
burguesa, derribá-la e destroçá-la, se possível por meios democráticos, se não
o for - de qualquer maneira que o seja.
E além disso, há também os idiotas úteis.
***
Certa noite durante uma recepção no Kremlin
dos tempos já distantes de Josep Stalin, este notou, algo divertido, que Leonid
Afanassiev olhava, pasmado, a peroração a que se entregava numa roda de aparatchikis o tristemente célebre
Andrei Jdanov, comissário-mor para os Assuntos Culturais.
Entregando-lhe o copo de vodka que tirara da
bandeja de um criado, Stalin disse para o seu interlocutor com a sua proverbial
bonomia e cinismo requintados: "Tens
razão, camarada, Jdanov é um idiota... Mas é um idiota útil!"
A expressão pegou e fez carreira,
nomeadamente quando estavam no poleiro os
asseclas do chamado Paizinho ou os que, não o sendo, têm o mesmo perfil mental.
É hoje uma expressão clássica. Mas que vêm a ser de facto os idiotas úteis?
São os auxiliares ingénuos, ou cavilosamente
oportunistas, daqueles que dominam os lugares e as consciências. Aquilo a que
se chama, grosso modo, os lacaios do partidão – seja ele mais de esquerda ou
mais tolerante em aparencia, às cores ou a preto e branco.
Geralmente pensadores falhados, intelectuais
a meio-pano, publicistas de trazer por casa, cientistas de tranglomango,
funcionários de perna quebrada, os idiotas
úteis servem a estratégia da formação política que lhes é cara, ora por interesse
próprio ora por não perceberem até que ponto esta se serve - frequentemente com
sobranceria - dos seus relativos talentos. Por vezes nem pertencem ao sector
indefectível do partidão. Pensam, contudo, que o podem ultrapassar em argúcia,
principalmente porque o seu passado é cheio de altos e baixos camuflados, de
curvas sinuosas e arabescos bem sucedidos, de pequenas vilanias. De falcatruas
interiores.
Os idiotas
úteis são extremamente perigosos, porque nem têm a “grandeza” do militante fanático,
directo posto que destrambelhado, sincero apesar de eventualmente crápula. Esta
classe de gente é em geral um esquisitíssimo manajeiro de salão.
Mas o mal que fazem às regiões e aos países!
O que vale é que a sua estatura diminui com o
passar do tempo, reduz-se como os sabonetes muito usados. Social e mentalmente
despudorados, aos idiotas úteis resta
pouco espaço de manobra, dado que mais tarde ou mais cedo deixam de servir aos
que os utilizam.
Talvez por isso, numa antevisão profética o
grande Dante Allighieri, na “Divina Comédia”, colocava estes pequenos
oportunistas no círculo infernal mais desolador - o lugar reservado aos que da
grande aventura da vida só sabem extrair baixeza moral, mediocridade pomposa e
esperteza saloia.
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