quarta-feira, 30 de maio de 2012

MIRADOURO



Nicolau Saião, Os idiotas úteis

OS IDIOTAS ÚTEIS


   Por vezes é quase comovente ler nos periódicos, ou nos espaços interactivos, certos textos de conspícuos comentadores, em geral imbuídos de uma filosofia de vida que se aproxima da candura de espírito. Ou, dizendo de outra forma mais carinhosa, da glamorosa ingenuidade que ostentam como aqueles velhos “leões das salas”, os quais, perdida a frescura da mocidade, substituem a musculatura outrora tersa por uma elegância conseguida nas melhores alfaiatarias.

   Muitos deles, para mostrarem que são democratas, que são isentos ou qualquer outra inanidade que lhes abrilhanta o bestunto, perdem laudas a analisar as “motivações” desta ou daquela figura grada dos entrepostos comunistas, com soma de pormenores que esquecem, ou fingem que esquecem, que um militante comunista, seja de base ou dirigente, é antes de tudo uma função. Basta ter-se lido e ter-se olhado com olhos de ver o comportamento das internacionais marxianas e quem as compõe e tem composto, para se perceber isto: o que os move, antes ou depois de tudo, é deitarem abaixo o que não é deles, feito por eles ou por eles controlado.

   Um comunista, seja ele escritor, cantor, pintor, médico ou arquitecto, simples lojista ou na orla dos argentários ou empresários de sucesso, operário ou colarinho branco, é primeiramente e acima de tudo um militante. Ou seja, um ser do partidão, o que poderá variar em grau mas nunca em base.

    Prontos para tudo, não perderam de vista, não perdem e nunca perderão a palavra de ordem dos seus chefes presentes ou desaparecidos: subverter a sociedade a que chamam burguesa, derribá-la e destroçá-la, se possível por meios democráticos, se não o for - de qualquer maneira que o seja.

   E além disso, há também os idiotas úteis.

                                         ***

   Certa noite durante uma recepção no Kremlin dos tempos já distantes de Josep Stalin, este notou, algo divertido, que Leonid Afanassiev olhava, pasmado, a peroração a que se entregava numa roda de aparatchikis o tristemente célebre Andrei Jdanov, comissário-mor para os Assuntos Culturais.

   Entregando-lhe o copo de vodka que tirara da bandeja de um criado, Stalin disse para o seu interlocutor com a sua proverbial bonomia e cinismo requintados: "Tens razão, camarada, Jdanov é um idiota... Mas é um idiota útil!"

   A expressão pegou e fez carreira, nomeadamente quando estavam no poleiro os asseclas do chamado Paizinho ou os que, não o sendo, têm o mesmo perfil mental. É hoje uma expressão clássica. Mas que vêm a ser de facto os idiotas úteis?

   São os auxiliares ingénuos, ou cavilosamente oportunistas, daqueles que dominam os lugares e as consciências. Aquilo a que se chama, grosso modo, os lacaios do partidão – seja ele mais de esquerda ou mais tolerante em aparencia, às cores ou a preto e branco.

  Geralmente pensadores falhados, intelectuais a meio-pano, publicistas de trazer por casa, cientistas de tranglomango, funcionários de perna quebrada, os idiotas úteis servem a estratégia da formação política que lhes é cara, ora por interesse próprio ora por não perceberem até que ponto esta se serve - frequentemente com sobranceria - dos seus relativos talentos. Por vezes nem pertencem ao sector indefectível do partidão. Pensam, contudo, que o podem ultrapassar em argúcia, principalmente porque o seu passado é cheio de altos e baixos camuflados, de curvas sinuosas e arabescos bem sucedidos, de pequenas vilanias. De falcatruas interiores.

  Os idiotas úteis são extremamente perigosos, porque nem têm a “grandeza” do militante fanático, directo posto que destrambelhado, sincero apesar de eventualmente crápula. Esta classe de gente é em geral um esquisitíssimo manajeiro de salão.

  Mas o mal que fazem às regiões e aos países!

  O que vale é que a sua estatura diminui com o passar do tempo, reduz-se como os sabonetes muito usados. Social e mentalmente despudorados, aos idiotas úteis resta pouco espaço de manobra, dado que mais tarde ou mais cedo deixam de servir aos que os utilizam.

  Talvez por isso, numa antevisão profética o grande Dante Allighieri, na “Divina Comédia”, colocava estes pequenos oportunistas no círculo infernal mais desolador - o lugar reservado aos que da grande aventura da vida só sabem extrair baixeza moral, mediocridade pomposa e esperteza saloia.

Sem comentários: