Às vezes chegam
cartas…
…e outras vezes chegam mails. Que hoje
por hoje, modernos q.b. que somos, jogamos no mapa interactivo com mais ou
menos vivacidade, menor ou maior pertinácia e, frequentemente, com salubres
resultados.
Desta vez foi dum rincão africano, a cidade
da Praia desse Cabo Verde onde se mesclam sinais de melodias singulares e um
solo que o não é menos por diversas circunstâncias específicas, que me chegou
um texto dum confrade de há largos anos que, após ter cumprido sua função
profissional na nossa RDP, para lá se transportou a outros tratos paralelos.
Refiro-me ao Nuno Rebocho, que quis endossar-nos este trecho memorialista com
marcadas referencias à “terra grande” e que aqui vos deixo para uns minutos de
degustação.
Lembrando
Manuel Ferreira
O português como uma só língua, com
vertentes derivadas (a falada em Portugal e no Brasil, a falada em cada um de
cinco países africanos) foi tese defendida por Manuel Ferreira muito antes que os
ventos da descolonização soprassem, de maneira irremediável, a partir de 1974.
Quando, com parte da sua obra escrita, conheci o autor de “Hora di Bai” (o
“africanista”, como era geralmente então apontada) nas mesas heterogéneas da
desaparecida leitaria “Paço”, no lisboeta Rossio – onde abancavam, em volta de
Armando Ventura Ferreira (o “patriarca”), escritores como Manuel da Fonseca,
Palla e Carmo (Sesinando), Baptista Bastos, António Borga, Costa Mendes, Júlio
Salgueiro, Hugo Beja, Fernando Grade, João Carreira Bom e muitos outros –
Manuel Ferreira era um tanto menosprezado, por quanto entendiam,
preconceituadamente, como “menores” as literaturas portuguesas de África,
“donzelas” pelas quais ele galhardamente já se batia. Esses eram tempos de
tertúlia pelos “cafés” e leitarias de Lisboa, em que intelectuais – em
conversas fluidas – iam desafiando a PIDE (polícia política) e a censura
salazarentas e se ergueram as bases da resistência à vilania que foi o
encerramento compulsivo da Associação Portuguesa de Escritores, por ter
atribuído prémio a Luandino Vieira. Eram tempos de franco e amistoso combate de
ideias diversas, e por vezes bem opostas, e que tanta falta fazem nos nossos
dias, se bem que houvesse também a tendência para o alinhamento por ideologias,
como era o caso dos neo-realistas que, por volta das 18 horas, juntavam as suas
armas nas caves do Martinho da Arcada, ao Rossio, ou da geração 61 que se
encontrava num “café” das Avenidas Novas: o “Paço dos Conjurados” (como nós lhe
chamávamos) era lugar de confluências no trânsito de alguns que não desdenhavam
de uma boa conversa antes de prosseguir para outra “freguesia”.
As ideias expressas por Manuel Ferreira
caíam em ouvidos moucos. Já então ele começava a advogar a necessidade da
língua portuguesa encontrar uma matriz comum (acordo ortográfico) que
unificasse as divergências criadas pela separação dos continentes. Só mais
tarde me apercebi dos contributos desta tese, à medida que fui (re)conhecendo a
realidade linguística de cada um dos novos países africanos fraccionados entre
jovens que estudaram em Portugal e jovens que estudaram no Brasil. Havia quem
se opusesse a esta senha renovadora – era o exemplo de Vasco da Graça Moura – e
que, aos poucos, foi merecendo o meu apoio e entendimento.
Nicolau Saião, África
Por essa época de incontidas raivas contra a
mordaça de Salazar – anos 60 do século passado -, Manuel Ferreira era um
“simples” autor de um romance, “Hora di Bai” (que dificilmente traduzíamos por
Hora de Partida), o qual merecia a curiosidade de então jovens, como Carreira
Bom, mal chegado a Lisboa vindo de Aldeia Nova de S. Bento, ou de mim mesmo.
Era o “Sargentanas”, como eu fraternalmente lhe chamava, em galhofa pelo seu
passado no exército colonial, embora tivesse o dever de o escutar com mais
atenção, mordido que estava pelo anúncio de novas aragens trazidas por “Nós
Matámos o Cão Tinhoso”, de Luís Bernardo Honwana, que foi meu colega em
Lourenço Marques, nome que recebia a cidade que é hoje conhecida por Maputo,
Moçambique. Mas só mais tarde, anos 70, viriam a surgir “Voz de Prisão” ou “No
Reino do Caliban”… e a grande dimensão, e importância, de Manuel Ferreira se
patentearia a meus olhos: Ferreira se tornaria no grande propulsionador dos
estudos africanos na Universidade portuguesa e referência actual das
literaturas africanas de língua portuguesa. Foi ele que, com olhos de ver,
primeiro conclamou os estudiosos para as novas literaturas que iam aparecendo
nas Áfricas, complementando o labor que ia sendo feito pelo angolano Mário
Pinto de Andrade (que eu conhecia de leituras várias na saudosa Casa de
Estudantes do Império, em Lisboa, alfobre de anti-colonialismos múltiplos e
nacionalismos díspares). De certo modo, foi um precursor e como tal deve ser
honrado, hoje em dia, o seu toque a parada.
É verdade que, como se costuma dizer, “a
ocasião faz o ladrão”: há sempre o momento em que as pessoas se revelam, para o
bem e para o mal, à verdadeira dimensão da sua grandeza. Serão nuns momentos o
que noutros não são ou ainda não o são. Estão sempre em interacção com o meio,
em constante mudança, numa roda-viva de constantes mutações e evoluções. Como
se diz: nunca aprendem. Portanto, nada é definitivo… nem mesmo a morte – vide o
“terrível” Fernando Pessoa. Pelo que é apressado e injusto julgar, em absoluto,
qualquer indivíduo – ele pode sair da sua aparente concha e tornar-se
gigantesco aos olhos do vulgo, ganhando um recanto da história.
Manuel
Ferreira foi nisto um caso exemplar.
Nuno Rebocho
1 comentário:
Nunca mais ouvira na Antena 2 o Sr. Rebocho, perguntava-me o que era feito dele. Agora já sei. As maiores felicidades em Cabo Verde, da Ana Marto.
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