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Os
chamados “grandes primatas” dividem-se em quatro grupos: os orangotangos, os
gorilas, os chimpanzés e os bonobos. Dos três primeiros, todos ouvimos falar
frequentemente e conhecemos a maioria das suas características e hábitos; não
dos últimos, que, no entanto, apresentam aspectos interessantíssimos e mesmo
mais aproximados aos humanos do que os restantes. Um deles é a utilização do
sexo como modo e instrumento de coesão social, de saneamento de conflitos. “Make
love, not war” e “peace and love” são, neles, não uma ideologia ou
preceitos de um catecismo mas prática fundamental para a sua existência,
individual e de grupo. O contacto homossexual nela incluído. Ao contrário das
habituais lutas pelo poder, da disputa das fêmeas, das guerras de grupos e por
aí fora, observáveis entre os outros, entre os bonobos o que é comum
observar-se é que tudo f…, minha gente. Se desconhecia o que eu disse e quiser
um pouco mais de informação sem ter que ir a correr à biblioteca, veja aqui . Dá para se ficar com uma ideia.
Os
bonobos estão mais próximos de nós porque, entre outras coisas, deram uma
função à sexualidade que ultrapassa a da reprodução e a da simbologia da
submissão ao macho vencedor; os bandos têm, até, uma estrutura matriarcal. Mas,
admitindo, como o faziam ainda os antropólogos darwinianos alguns anos atrás,
que o ser humano provém de uma evolução do estado macacal, onde está a
violência dos macacos para com as fêmeas enquanto preliminar de conquista? Não
se observa nos bonobos, como não se observa nos restantes primatas nem em
nenhuma espécie conhecida. O que pretendo eu dizer com isto? Vou tentar ligar
as peças do que parece um puzzle,
acrescentando-lhe uma outra.
O
século XIX é, como todos sabemos e eu já lembrei vezes que cheguem, um século
cheio de profetas e messias. Um deles foi Augusto Comte, o patriarca da ciência
que investiga as leis de formação e consolidação das sociedades humanas bem
como as que permitem prever a sua evolução, com vista a formar a sociedade
perfeita e definitiva: a Sociologia. Marx nunca reconheceu a influência que
nele teve Comte (talvez porque este considerasse a propriedade privada como
indispensável para formar o carácter do cidadão da Humanidade Nova, ao nível do
desenvolvimento do sentido e do sentimento de solidariedade), mas certamente
que a sua juventude não o desconheceria já. É que a “filosofia positivista”
teve um papel decisivo em muito do que aconteceu nos 100 anos que se seguiram à
morte de Comte, em 1857, e a sua influência perdura em grande medida já neste
novo milénio graças a um conjunto de circunstâncias que lhe foram propícias e
ao facto de, por ser conceptualmente primária, facilmente haver seduzido os
sequiosos de poder de horizontes estreitos em todas as áreas. Não por acaso, a
sua obra de referência chama-seCatecismo Positivista.
Não
entrarei em pormenores sobre o positivismo, como filosofia. Assinalarei apenas
o fundamental:
- Para Comte, a humanidade evolui ao longo de três estádios: o
religioso, assente na superstição, próprio de sociedades arcaicas; o
metafísico, em que já se procura especular racionalmente sobre o tema das
origens do mundo e de um seu Criador, como foi o caso da Idade Média (cá está
ela, de novo); e, finalmente, o estádio positivo, no qual, desprezando tais
questões como menores, insolúveis e mesmo sem sentido, a humanidade considera o
conhecimento científico, o conhecimento do que se lhe apresenta aos sentidos,
como o único válido. O ateísmo, aliás, enquanto movimento exclusivamente
ocidental e do século XIX, fundamenta-se nestes princípios; passa-se, deste
modo — contraditoriamente com o primado estabelecido da racionalidade —, da fé
que afirma a existência de um nível divino, absoluto, do ser, para uma fé que
afirma o seu oposto.
- De qualquer modo, a humanidade necessita de uma religião — se o
quisermos: de um horizonte. Há, pois, por este motivo, que criar uma nova
religião, a que é própria desses Amanhãs que Cantam visionados por Augusto
Comte: a religião positivista. Além dos templos em que se presta culto à
Humanidade, as estátuas que representam os ídolos da superstição e da
irracionalidade de outrora deverão ser substituídas pelas dos grandes
benfeitores da grei, dos cientistas… E, sobre todas as outras ciências, como
sua síntese útil e orientadora, aquela que visa a felicidade humana definitiva:
a Sociologia.
Basta
lembrar que, a este segundo nível, Comte foi o guru de múltiplos movimentos
republicanos, incluindo o português e da I República lusa; que a frase “Ordem e
Progresso”, inscrita na bandeira brasileira, se refere à visão comteana da
sociedade perfeita do futuro sob a égide da ciência sociológica; que, a Igreja Positivista do Brasil se mantém desde
há 120 anos… Tão ou mais importante, porém, do que os aspectos político
directos, são os que dizem respeito ao caldo cultural de “cientismo” que ajudou
a formar e a disseminar mesmo dentro do próprio meio científico, assente na
autoridade dos novos conhecimentos e das novas tecnologias, chegando a travar
uma investigação séria e a ostracizar quem o queria fazer. A doutrina
positivista e os seus conscientes e inconscientes esbirros serviram poderes
políticos de todos os matizes, nas universidades e fora delas. Por cá serviram
Salazar depois de terem servido a I República, anulando tudo o que fosse
tentativa de renovação e alargamento de estudos fora das suas perspectivas.
O
primarismo conceptual do positivismo, maior ainda do que o do materialismo
histórico, marxista, não o deixou reinar por muito tempo no que respeita às
chamadas ciências humanas; quatro décadas bastaram para a contestação adquirir
teorização e metodologia próprias e eficazes. Mas, uma vez mais, tal como
sucedeu com o marxismo, as fragilidades do positivismo transformaram-se na sua
maior força. O positivismo constituiu um veneno muito mais insidioso porque
contava com um princípio fundamental na sua fé, irresistivelmente lisonjeiro
para qualquer membro da tecnologicamente triunfante civilização ocidental: o
homem europeu ou, mais latamente, o de qualquer cultura de raiz europeia, seria
aquele que se superiorizara a todos os restantes homens do planeta, ao
conseguir furtar-se às trevas religiosas e metafísicas. Constituindo o cume
inultrapassável de uma evolução histórica, constituía igualmente a referência
para tudo o que o antecedera. E o que antecedera o homem positivista, como não
podia deixar de ser, pelos pressupostos do seu catecismo, fora o mundo da
superstição e da barbárie que o pensamento, enfim iluminado e esclarecido,
naturalmente deixava adivinhar. A estratégia que já servira aos Renascentistas,
reutilizável, serviu, quatro séculos depois, às novas mistificações.
Nem
todas as imagens se podem gabar, como esta, de tão grande, espontânea e
duradoura aceitação simultânea por mundos tão diversos como a rua e o gabinete
do estudioso académico: refiro-me à consequente grande ilustração positivista
do acasalamento troglodita. Nela, para estarrecimento e gozo das massas e
afirmação do superior saber da instituição universitária que as elevava, por
fim, ao verdadeiro conhecimento, passava o filme do brutamontes apenas quase
humano, empunhando, triunfante, a moca com que espancara a fêmea que agora
arrastava pelos cabelos, vencida, não interessa se convencida. E duas
convicções contraditórias se firmaram, subliminarmente, no inconsciente de
ambos os sexos, com tal imagem de grande sucesso sapiencial e comercial: a de
que o nosso tempo era incomensuravelmente superior às épocas anteriores; e a de
que o natural e legitimamente desejado sexo às claras era o sexo bruto,
que, com ou sem a mocada preliminar, pouco mais era do que a “mocada” praticada
por pura pulsão. Ainda hoje vemos, por tudo quanto constitui o mundo da
social-comunicação, a constante mas indecisa valorização quanto à
essencialidade sexual, o balanço entre uma sexualidade “animal” e uma outra
que, por mais humana, deixou de se ter a certeza sobre se é “natural”,
“cultural” ou simplesmente disfarce para preservação do indivíduo e da
sociedade.
A
imagem era sublimadora de tantas pulsões que ninguém, ao início, questionou o
óbvio. Em primeiro lugar, uma vez que ninguém alguma vez se cruzara com um
troglodita, como se podia saber serem aqueles os seus hábitos? Não existindo
documentos que o comprovassem; nunca se tendo observado nada de parecido em
qualquer das tribos arcaicas conhecidas nem vestígios de antigas tradições que
o sugerissem — antes, nas mais arcaicas, predominando o matriarcado; sendo o
comportamento do macho, em todas as espécies existentes na natureza, o oposto
do afirmado sobre o do abominável homem das cavernas: em que homem
comprovadamente existente se poderia encontrar tal comportamento? Nos
camponeses, esses excluídos da alfabetização? Não, respondia Chesterton, um
século atrás, mexendo, divertido, os dedinhos dos pés dentro das botas,
transformando como ninguém a inteligência e o riso em ironia incomparável: os
antropólogos confundiram o homem “primitivo” com o homem dos bas-fonds das
grandes cidades europeias. O “homem primitivo” da antropologia, dizia ele, não
é mais do que o chulo que bate na sua pêga e a arrasta pelo chão, antes de lhe
arrear de outra maneira para consumar o seu domínio — porque esse “homem
primitivo” nunca existiu fora da degradação das ruas escusas e do aviltamento
humano que nelas se acoita. Um macho estranho e repugnante para qualquer
bonobo, acrescentaria eu.
Meu
caro Carmo da Rosa, veja agora como o nosso cérebro, e com o nosso, o de
milhões e milhões de homens e mulheres das gerações seguintes, foi formatado
por uma patranha simplória mas de altíssima eficácia manipulatória, concebida
por um conjunto de estúpidos “positivos”, ávidos de poder. Deixe lá, o que está
debaixo do nosso nariz é o que mais dificilmente conseguimos ver, tão
dificilmente que na maioria das vezes morremos sem ter conseguido fazê-lo. É
nas pedras que tropeçamos, não nas montanhas.
E
repare agora, também, nas consequências. Porque tal imagem, repito, se
constituiu um acicate no processo de transformação social ao nível da definição,
papel e do estatuto de cada um dos sexos que se verificava e se acelerou e
pelas duas guerras, também foi em grande medida a origem da grande bagunça hoje
existente tanto no que respeita à caracterização da sexualidade como à sua
prática. Primeiramente porque ajudou a criar uma divisão interior entre qual o
“verdadeiro sexo”, o que se deve praticar, para atingir o verdadeiro gozo: o
“animal”, entendido como a tradução de uma pulsão num mecânico truca-truca; ou
o “humano”, cheio de variantes mais ou menos desejadas e bem vistas,
predominantemente de raiz cultural. Depois, e em consequência, porque pôs no
caminho do feminino em processo um escolho extra e de tratamento nada fácil. Um
escolho sem palavras que o caracterizem e que actua directamente por sugestão,
não é nada fácil de resolver.
(...)
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