segunda-feira, 14 de maio de 2012

O rendez-vous do troglodita - 1


Jerónimo Bosch, O Jardim das Delícias (painel central)

Na sequência do que motivou os cinco textos que constituíram os posts da sequência que aqui publiquei com o título comum "Da surdez no clítoris", começo agora a publicar uma outra, "O rendez-vous do troglodita", em resposta a este post e, no seguimento do comentário que lhe fiz (ver caixa), a este outro.



CdR:

(...)

O essencial das suas posições assenta na superioridade do que supõe novo face ao que supõe velho. Avaliando o que é novo como um progresso em relação ao que é velho. Assinalo: progresso.


As minhas avós eram analfabetas, bem como o meu avô paterno. Trabalhadores rurais, eles; camponeses, todos. Do interior do país. Nenhum dos meus avôs maltratou as suas companheiras e ambas, em especial a paterna, tiveram um papel bastante marcado e importante nas respectivas famílias. Com as naturais — ao tempo — liberdades e restrições próprias de cada sexo. Como elas, a crer no testemunho dos meus pais e outros familiares próximos, 80% dos restantes habitantes da vila. A maioria da excepção que constituíam os sobrantes 20% era constituída por alguns dos mais pobres e alguns dos mais ricos. Assinalo: alguns.


Pelo que, sobre as nossas experiências pessoais no que respeita à importância do papel da mulher desde as sociedades arcaicas matriarcais, estamos esclarecidos. Ou então, releia ou leia esse drama terrível que é A casa de Bernarda Alba, do Lorca, que os meus 15 aninhos — ao contrário do que sucedeu com outros amigos meus, de famílias citadinas, que achavam aquilo um exagero — souberam desde logo identificar com as vivências que tivera, não tanto com os “cavadores de enxada”, mestres de ofício e outros, mas numa parte das “casas ricas” da vila (na família da minha mãe encontravam-se os dois extremos; na do meu pai, os que, a pulso, procuravam viver com mais desafogo). Porque nas mais pobres ou nas “remediadas”, embora sob a necessidade de manter a aparência da “honra”, a atitude quanto à sexualidade não era bem aquela.


Agora, vamos por partes. Em primeiro lugar, o que se liga à quantidade. Mas, antes, para situar melhor o que quero dizer, deixo-lhe já uma pequena nota prévia ao que virá a seguir. E que é isto: a ideia da Idade Média como Idade das Trevas foi um recurso dos Renascentistas para se demarcarem e se apresentarem como uma nova forma, a forma correcta, de perspectivar o mundo. De facto, quando se lêem os textos que escreveram, encontra-se um discurso bem diferente, que reconhece nos medievais os seus mestres. Porém, para aqueles que, intencionalmente ou não, nesse tempo e futuramente, por pouco mais se interessaram verdadeiramente por algo que não fosse essas declarações bombásticaspour épater les gens e chamar sobre eles as atenções, bastou-lhes a vulgata que bastava para justificar os seus fins. Leia, por exemplo, Luz sobre a Idade Média, de Régine Pernoud, um clássico das novas investigações.


É, aliás, um truque desde sempre actual. Como dizia o Mick Jagger, ainda há pouco tempo: “Bem, nós tínhamos que falar mal do Sinatra…”. O marketing perde-se no chavão da bruma do tempo.


Passemos então ao abençoado e desejado sexo: investigue um bocadinho também, por sua conta. Nem precisa de grandes referências para, rapidamente, se dar conta de que a Idade Média nunca foi a época da diminuição, por opressão ou medo de divino castigo, da actividade sexual, bem pelo contrário — ou porque pensa que foram inventados os cintos de castidade? Suspeita-se de que Jerónimo Bosch, por exemplo, pertencesse a uma seita (de cujo nome não me recordo agora, mas que facilmente encontrará) cuja conduta faria corar qualquer swinger e que esteve muito longe de ser a única. Por cá, há já mais de 40 anos, houve quem fizesse um estudo sobre a vida sexual dos portugueses da medievalidade e concluiu que o país era, todo ele — nobreza, clero e povo —, a esse nível, tão activo como uma coelheira. O que não me surpreendeu. Tinha eu para aí uns doze anos quando li uma biografia (academicamente recomendada) de Nuno Álvares Pereira: descobri, à saída da infância, com a natural estranheza face ao que se impingia, na altura, na escola, quanto ao tempo em que ele vivera, que o Condestável era o 13º filho de um total de 32 que o seu pai, eclesiástico e militar, fizera a 4 mulheres. Às claras, como muitos e muitos outros. Sem renegar os seus deveres parentais. Otelo Saraiva de Carvalho, ao pé destes medievais, é um asceta.


Nem mesmo a homossexualidade, pelo menos a masculina, foi vista como algo de censurável por aí além até à imposição da moralidade burguesa, no século XIX — moralidade de fachada, já que tinha a sua raiz na mesma necessidade de condenação moral da ordem política anterior, como justificação da necessidade de uma revolução, tal como referi no Da surdez no clítoris com que lhe fui respondendo. Em todos os textos que nos dão conta dos costumes sexuais até ao século XVIII, na Europa, encontramos alusões aos amos que dormem com os criados, aos amos que dormem com outros amos e aos criados que dormem com os outros criados, como sendo factos corriqueiros e que não levantavam problemas a ninguém, a não ser quando, por motivos mais ou menos obscuros, se queria condenar quem o fizera à prisão, ao degredo, à forca ou à fogueira. E as casas reais, nisso sempre, sempre ao lado do povo: D. Pedro (o da D. Inês) mandando castrar Afonso, seu escudeiro e amante, a pretexto justiceiro de este haver desvirginado e engravidado uma moçoila; o Infante D. Henrique, aos marinheiros tão afeiçoado, discretamente afastado da corte; D. Sebastião…


Tenha-se em atenção o Decameron, do tão apreciado pelos seus contemporâneos Bocaccio; os poemas populares licenciosos que Carl Orff transformou na cantata Carmina Burana; o poema quase obsceno encomendado pela princesa não-me-lembro-de-qual ao trovador idem. E tenha-se também em atenção que os conflitos morais presentes no Frei Luís de Sousa não existiam nos inícios do século XVII; que essa peça clássica do teatro português é uma fraude histórica cometida por um Garrett metido até à alma nos tormentos, pessoais e públicos, que uma filha ilegítima lhe gerava, procurando, desta maneira, chamar a atenção para situações absurdamente dramáticas causadas pela mentalidade do seu século.


Mais vitoriosa, porém, do que o modelo de casamento e de família que os estratos sociais vitoriosos em 1789 procuraram instituir ao longo das mudanças no viver colectivo que promoveram e desenvolveram até aos nossos dias, foi sempre a realidade. Aquela que fez viver em conjunto Paul Rée, Lou von Salomé e Nietzsche; Chopin, Amandine Dupin (de nome literário, Georges Sand) e suas sucessivas namoradas; talvez mesmo, quem sabe, Byron, Shelley e a segunda mulher deste, Mary, a criadora do romance Frankenstein. Aquela realidade que, já no século XX, levou Simone de Beauvoir a escrever L’Invitée, em consequência de um dos ménages à trois entre ela, Sartre e alunas de ambos. A realidade a rebentar pelas costuras. Só em meia dúzia de casos e em meios intelectuais e artísticos? O casamento nunca foi uma preocupação proletária, como se sabe. E, quanto à homossexualidade, relembre-se a caracterização da descarada lésbica, dura e viciosa, pertencente às “classes mais desfavorecidas” que Gomes Leal fez num dos seus poemas.


Dizem as más-línguas que o tenente-coronel Robert Baden-Powell criou os escuteiros porque tinha determinados gostos, hoje alvos de condenação social e jurídica. Não sabemos se é verdade, mas sabemos que uma menina da high-society, Florence Nightingale (nascida, como não podia deixar de ser, nos inícios do século XIX), apontada como exemplo de emancipação feminina, rompendo com parte da família, decidiu ir tratar os feridos da guerra da Crimeia, mais tarde fundar uma escola de enfermagem, acabando por receber a Cruz Vermelha das mãos da rainha Vitória. A enfermeira Nightingale e as suas companheiras revolucionaram a enfermagem, até aí exercida pelas vivandeiras (destacamento de putas que, até aí, acompanhara os exércitos) e pelas cozinheiras. As vivandeiras cuidavam (melhor ou pior) dos ferimentos; cuidavam também de algo, porém, de que a menina emancipada e suas continuadoras nunca mais tiveram em conta: do impulso para a vida. Consciente e reconhecidamente ou não, a importância do sexo estava presente na vida dos séculos anteriores.


Hoje não. E não apenas na enfermagem, mas em muitos outros sectores. Vá aos institutos que tratam de pessoas que, por doença, acidente ou qualquer outra coisa, ficaram diminuídas fisicamente para o resto da vida e pergunte-lhes como encaram a prática da chamada terapêutica ocupacional. As mulheres e os homens que, com as melhores intenções, a praticam, habilitados com o respectivo curso, não se dão conta nem ninguém os alertou suficientemente, para o significado profundo que a sua prática estimuladora do desejo de viver e da consequente recuperação tem em quem ela é exercida. Não é de admirar as profundíssimas crises psicológicas que grande parte dos pacientes sofre nesses períodos e que se prolongam muito para além deles, a maior parte das vezes pela vida fora. Sofridas, é claro, dissimuladamente, envergonhadamente, em silêncio e, por vezes, num posterior rápido ou lento suicídio. O humanismo da emancipação humana tem estas faces desumanas.


Já agora, um pequeno parêntesis sobre a prostituição: do mesmo modo que a tradição, como dizia o anúncio, já não é o que era. A prostituição sempre foi algo ligado ao sexo como arte ou celebração religiosa, desde a Antiguidade, quer a Oriental quer a Clássica; as cortesãs eram respeitadas, algumas tiveram poder, eram companhia de reis, nobres e burgueses. Desde a Pompadour do Rei-Sol, até à prostituta — negra! — que, para grande gáudio do povo, punha fora de casa, aos gritos, o nosso restaurador da independência pátria, D. João IV. A prostituição da miséria, da degradação do carácter, da fome e da tuberculose, é a que assolou os bairros das cidades da Revolução Industrial.


Resumindo e abreviando: como dizia o desbragado (na linguagem e no viver) Luiz Pacheco, que o Paulo Porto já para aqui chamou: “não!, no nosso tempo não se f… menos do que hoje…, f… era mais às escondidas”. Logo, se em quantidade tem sido, portanto, ao que parece, mais ou menos igual, ao que é hoje, embora hoje seja possível praticá-lo mais “às claras”, as diferenças só se poderão fazer sentir na qualidade. E entro na segunda parte da resposta, lembrando um dado que me parece interessante. Se já o conhece, pode saltar o parágrafo que se segue.
 (...)

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