Tenho
lido, com proveito e interesse, o ciclo de textos que José Gonsalo aqui tem
publicado “Da surdez no clitoris” creio que despoletado, ou a pretexto, de uma
intervenção de uma leitora pontualmente escrevente e decerto interessada nestes
assuntos, tanto política como fisicamente…
Creio
que fará sentido, como achega ou sublinhado, dar a lume o texto que constituíu
a minha intervenção aquando da mostra de Sevilha “De puta madre – arte
erótica”, no qual se perpetram as
dissemelhanças (que alguns querem abafar, solapar, maquilhar) entre estes dois
factos (erotismo versus pornografia) da condição humana/social aonde alguns, ou
até um razoável número, querem ver a foto “a saque e a sangue”, do imaginário
individual ou colectivo ocidental.
ARTE E EROTISMO
Nicolau Saião, La chambre engloutie
No descontínuo da existência humana o
erotismo assegura a continuidade do som envolvente. “Este corpo fala”, dizia Lacan. Suspenso entre dois silêncios, o da
vida e o da morte, o erotismo é mais que mero sinal na campina onde os
fantasmas primordiais do espírito vagueiam sem destino.
Se ao princípio foi o Verbo, logo a seguir o Homem teve de confrontar-se
com um surpreso e confuso balbuciar. “Coisas
de deuses”, dir-me-eis familiarmente. “Coisas
universais, onde se reproduzem realidades misteriosas”,
responder-vos-ei. Afirmando a desordem
sonora (que é uma bem ordenada configuração) contra o tímido império de uma
perturbada realidade muda, o erotismo participa na instauração duma realidade
outra, transfigura as experiências e o próprio sentido da Natureza circundante.
Não é arbitrariamente, pois, que Marianne Roland-Michel nos diz que “A humanidade só existe graças à infinidade
milenar dos acasalamentos, aos sucessivos nascimentos, num encantamento e
encadeamento inumeráveis como a areia dos desertos. Homens e mulheres
enlaçam-se na noite dos tempos e procriam, por muito que se recue no passado.
Daí nós aqui estarmos hoje, gerados e geradores.
A arte é, antes de tudo, linguagem dos sentidos em movimento. À arte não
se chega pela Razão: a poesia, como dizia Lautréamont, “é um rio majestoso e fértil”; a pintura erótica, por seu turno - na
minha concepção metafórica - é uma
região silvestre onde vagueiam Dionísio e as ninfas, acompanhados por todas as
estrelas e cometas que constituem o seu séquito. E, como se sabe, os deuses
pagãos enquanto símbolos existem no nosso tempo, se os soubermos ver, que o
mesmo é dizer: se soubermos reconhecer-nos no sagrado que é a vida.
Em 1908 declarou Alfred Loos que “toda
a arte é erótica”. Esta frase tem de entender-se no contexto em que foi
pronunciada. É uma verdade que a arte pertence ao mundo de Eros, ao mundo que
se opõe a Thanatos, que mais que o território da morte é o lugar da
não-existência, das frias pulsões destrutivas. No entanto, a arte erótica tem
características que a definem: ela epigrafa o corpo amoroso e a pessoa sexuada, apresenta-a simultaneamente como objecto e sujeito de desejo, coloca os
dados da questão na capacidade humana de fruir o espaço da sexualidade e de
transfigurar essa experiência em poesia e libertação da nossa triste condição
de seres mortais.
Já o mesmo não se dá com a pornografia: esta, pelo contrário,
recenseando falsas premissas (é um mundo de frieza e de supressão da lógica dos
relacionamentos e mesmo da sua exemplaridade) é uma espécie de caricatura
existencial – terreno onde apenas se jogam esquemas pré-determinados,
naturalmente controlados por razões simplesmente argentárias e de comércio
deliberado.
A arte erótica tende pois a sublinhar uma evidência fundamental rodeada de sombras suspeitas, a trazê-la ao
quotidiano salubre. Na infinita madrugada dos corpos que se amam, as
classificações só contam se evocam e provocam um rito mais perfeito e gerador
de novas e exaltantes comunhões interiores: a experiência banal eleva-se até ao
ponto supremo, ao vértice da comunicação. Tal como, na religião, a cerimónia de
ordenação sacerdotal comporta uma unção, uma transfiguração – mesmo que
ilusória, porquanto é dirigida a uma entidade fora do mundo, um deus – no acto
erótico passa-se a outro plano, aquele que une dois corpos, duas mentes, duas
experiências, dois percursos. Amar não é dois tornarem-se um, mas um tornar-se
dois – é, por extensão, o ser humano tornar-se universo. O amor é uma infinita repetição. Para o enamorado a sua amada é
todas as mulheres - e vice versa. O Homem, definitivamente re-ligado, existe
então em plenitude. Daí que o acto amoroso seja uma simulação da morte (ultrapassando-a soberanamente) e não uma pequena morte como queriam os
aristocratas libertinos e derivados menores ou uma grande morte como propunham os sádicos, míopes sexuais que
necessitam de óculos/faca, ou os autoritários no plano social, membros em geral
de crenças reveladas com o seu ódio ao amor humano, que esplendidamente se
ergue contra o egoísmo teocentrista.
A voz sibilina que até nós chega do fundo das eras traz com ela a
certeza de que a realeza absoluta
pode ser compartilhada por todos os homens e mulheres que se livraram da
pequena escala hipócrita e redutora que os próceres societários armadilharam
tendo-os como alvo (expressa, por exemplo, através do negócio da moda e da cosmética, do
aperfeiçoamento corporal como um absoluto, da pacóvia alegria de blocos para
solteiros, jornadas para a terceira idade, etc.). Assim se explica que as
religiões reveladas, que subjazem a deuses autoritários, persigam aberta ou
dissimuladamente o erotismo, o corpo e a sua dimensão amorosa enquanto
discretamente incentivam pela sua acção castradora e estupefaciente a
pornografia e os recalcamentos societários. É esta a explicação, também, para a
atitude do mundo argentário, que descaradamente explora as forças eróticas -
que primeiro sufoca - nos bordéis e nas lojas de sexo. Ou a do mundo da
política totalitária, que procura incluir a feição sexual, controlando-a, numa
razão de Estado ou de partido.
Uma face, na arte, não é apenas uma
face: milhares de momentos de outras faces nela se representam e
consubstanciam. O nu da imagem corresponde à nudez assumida do homem e da
mulher em comunhão, pois o erotismo é o sinal da sacralização do mundo
concretizado em seres que se amam e possuem. Viaja-se através de um corpo como
se viaja em busca dum planeta a milhares de anos-luz. A arte erótica, seja pelo
traço e a cor de Cézanne, Watteau, Bazille, Clóvis Trouille, etc., ajuda-nos a
encalhar a nossa barca nas margens onde cresce o mirto e a rosa, onde os
fulgores do dia se transmutam incessantemente na penumbra de que os amantes
necessitam para os mistérios do seu coração.
Suspensa entre o brilho duma imagem ausente e a saudade daquilo que a
imaginação nos concede, a arte erótica fala com vital soberania: e é desta
maneira que se assume como signo da humanidade liberta, eternamente colocada
além das aparências passageiras e compreensivelmente sujeitas ao
desaparecimento final.
in
“De puta madre “ – exposição de arte erótica”
(Sevilha)
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