Título deste texto de Alberto Gonçalves no DN, que transcrevo integralmente:
Os comentários às eventuais ameaças de
Miguel Relvas a uma jornalista do Público são
um perfeito retrato do país. Na semana passada, escrevi aqui que o papel, a
ambição, o estilo e o respeito pelas regras democráticas do sr. Relvas lembram
demasiado o eng. Sócrates. Num ápice, Estrela Serrano correu a acusar-me de
"falácia", "desespero" e "desejo de proteger quem
praticou a ameaça". Como de costume, Estrela Serrano não podia estar mais
enganada.
Em primeiro lugar, porque as
"provas" da comparativa inocência do eng. Sócrates que Estrela
Serrano exibiu no seu blogue (vaievem.wordpress.com) constituem evidências
bastante razoáveis da respectiva culpa. Em segundo lugar, porque ao contrário
de Estrela Serrano nunca aceitei cargos de nomeação política e nem sequer
convivo com políticos (uma tentação recorrente em jornalistas com aspas), pelo
que não me desespero com eventuais abalos nas carreiras deles. Em terceiro
lugar, porque atribuir-me instintos protectores face ao sr. Relvas, cuja
relevância no actual governo desde o início me pareceu uma afronta à
credibilidade do mesmo, é, no mínimo, um indício da distância que separa
Estrela Serrano do discernimento.
Não censuro a senhora, que se limita a
presumir em mim os hábitos dela e da pátria em geral. No fundo, o amor à
liberdade de expressão que Estrela Serrano descobriu agora é aquele que lhe
faltava quando os antecessores do sr. Relvas procuravam, e às vezes conseguiam,
silenciar jornalistas. À época, acrescento entre parêntesis, Estrela Serrano
pontificava na Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC), agremiação que,
vá lá perceber-se, jamais encontrou vestígio de ilicitude na relação do governo
de então com os media.
Estrela Serrano é muito portuguesa, e
Portugal é um lugar onde as convicções derivam de simpatias partidárias,
compadrio e arranjinhos à mesa do restaurante. De tão infantil, só a descrição
da paisagem deprime: os que negavam os abusos do PS são os que hoje se indignam
com os abusos do PSD; os que se indignavam com os abusos do PS são os que hoje
negam os abusos do PSD. Contra toda a evidência e a favor de todo o
compromisso, os apoiantes de uns perdoam-lhes o que condenavam noutros e os
apoiantes dos outros indignam-se face ao que lhes era indiferente. Os primeiros
perdem a razão que tinham. Os segundos não ganham razão nenhuma.
Gostaria, insisto, que Estrela Serrano
não me julgasse pelos critérios que a orientam. Se digo que o presumível
desvario do sr. Relvas não é inédito não pretendo dizer que o desvario é
desculpável, mas que o indesculpável clima que o propiciou já vem de trás. O
sr. Relvas faz o que quer na medida em que os seus parceiros de ofício sempre
fizeram o que queriam. E o sr. Relvas sairá provavelmente impune na medida em
que a impunidade tácita do ofício é regra da casa.
Se acontecer assim, é pena. Acho que, menos pelo episódio do
Público do que pelo rústico enredo de espionagem que originou o episódio, o sr.
Relvas não devia permanecer no governo. Acho que a direcção do diário em causa
não devia ser selectiva na escolha das pressões que valentemente denuncia ou
que estrategicamente esconde. Acho que o jornalismo que dorme com políticos não
devia estranhar que os leitores fujam da promiscuidade. Acho que quem aguarda a
sentença da absurda ERC devia esperar sentado. Acho que, em vez de alucinações,
Estrela Serrano devia ter vergonha.
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