terça-feira, 8 de maio de 2012

Da surdez no clítoris - 4



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Quando Álvaro Cunhal publicou A superioridade moral dos comunistas já Freud era, há muito, dono da secção ocidental do Jardim das Delícias, comunistas residentes incluídos. O século XX foi, neste plano, o século da psicanálise, o que, em conjugação com o aumento do número e importância dos papéis desempenhados pelas mulheres e a consequente alteração do estatuto do feminino, alterou por completo a perspectiva das relações entre os sexos e a própria definição do que definiria cada um deles quer individual quer socialmente. Os conceitos psicanalíticos foram, a partir de certa altura, integrados num outro conjunto conceptual emergente no âmbito da luta por emancipações e direitos diversos, sempre, todavia, inseridos num enquadramento dado pelo vocabulário social e histórico do ou com a raiz oitocentista do materialismo dialéctico.

Foi nos trinta anos decorridos entre 1955 e 1985 que teve lugar a formação do contexto no seguimento do qual vivemos hoje. São os trinta anos em que as chamadas tendências sociais minoritárias irrompem no Ocidente como expressão da necessidade das mudanças no modo de viver que se tornavam irreprimíveis. Surgem grupos contestatários do “sistema”: osprovos, na Holanda; quase imediatamente, os beatnicks; poucos anos depois, nos USA, o movimento hippie, como consequência da influência de ambos os grupos na chamada beat generation; e, inevitavelmente, dois ou três anos depois, os yippies, do Youth International Party, politicamente ligado ao anarquismo — todos eles declarados pelos marxismos instituídos como movimentos de alienação da juventude fabricados pela CIA para a desmobilizar da "justa luta encabeçada pelos comunistas". É também na segunda metade da década de 50 que, paralelamente à posterior pregação hippie do “make love, not war”, começa a emergir o burguesíssimo movimento swinger, o qual no final dos anos 60 merecia já reportagens em órgãos de informação tão respeitáveis como a Newsweek. E é também nos mesmos anos que a homossexualidade — essa “tristeza”, como a classificava o mesmo Cunhal, nos anos 90 — começa a espreitar dos armários quando não a mostrar-se já orgulhosamente de corpo inteiro. De tudo isto se distanciaram os marxismos dos diferentes países “revolucionários” bem como os partidos comunistas, de diversas obediências, do resto do mundo: homossexualidade, bissexualidade, família comunitária, amor livre e o próprio erotismo eram considerados desvios, doenças da sociedade burguesa.

Lembro-me de haver lido algures que um jornalista de uma revista de Angola (de cujo nome não me recordo agora e onde escrevia gente da craveira do poeta Herberto Hélder), enviado para cobrir a chegada do Homem à lua, voltou mas a falar predominantemente de coisas como… camas de água, inventadas por essa altura e aproveitadas desde logo para muitas mais coisas além de dormir. Além de dar também conta de algo que, visto à distância de mais de 40 anos, adquire contornos interessantíssimos: a orgia sexual colectiva que se terá seguido ao sucesso da missão entre muita gente envolvida no projecto, quase como que numa celebração espontânea da própria espécie. Creio que este exemplo bastará para se conseguir uma imagem da erupção que, neste plano, se deu no Ocidente. Juntamente com as emergentes problematizações ecológicas e à atenção dada às formas espirituais de vida do Oriente, do hinduísmo ao budismo zen — a este último devido sobretudo aos estudos de Alan W. Watts, que integrava o exército americano estacionado no Japão a seguir ao final da guerra.

O Maio de 68 representa e acrescenta algo a tudo isto: a afirmação da existência de uma esquerda “moderna”, de “temas e propostas fracturantes”, para utilizar a terminologia de herdeiros dos soixante-huitards, como o é a parte mais inspiradora da formação do BE. O fascínio oriental chegou também aos “duros” do marxismo (e, não por acaso, aos neo-nazis), com os seus entusiasmos pelo educador-mor das massas, Mao Tsé-Tung e pela “revolução cultural” do “Bando dos 4” no PC chinês, esses “comunistas de manteiga”, como lhes chamara Estaline — agora também “bloquistas”. E nem é preciso sair da recordação da constituição do Bloco para nos apercebermos de outra coisa.

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3 comentários:

alf disse...

O que me parece mais curioso é as teorias que se têm feito sobre a organização da sociedade humana ignorando por completo a natureza do ser humano - se a sociedade é para servir o humano, a primeira coisa seria compreendê-lo, parece-me...

Interessante série de textos.

Um reparo sobre o swing; essa é uma prática antiquíssima entre o povo. Suponho que nas classes com bens é que se punha o problema da transmissão da propriedade e isso levava à imposição de restrições à sexualidade.

Em Portugal, sei de um barro operário de uma grande empresa onde, lá para os anos 50 ou antes, as casas da parte de trás do bairro eram destinadas aos casais que tinham por hábito trocar de camas para não perturbar os casais que não tinham esse hábito e que ficavam nas casas da frente

José Gonsalo disse...

Alf:

Obrigado pelo apreço.
Foi exactamente também nos anos 50 que tudo começou com mais nitidez nos USA, ao que parece. E terá sido um casal português que de lá voltou nessa época que iniciou a prática do swing no país.
Pelo menos, foi o que eu li numa peça jornalística de um jornal, creio que o Público, já não me lembro.

Anónimo disse...

insuficiente... mesmo. faltaria dizer que marxistas e cristãos praticam os "vícios da burguesia" em becos esconsos, a burguesia prefere os recantos confortáveis do lar e em sintonia com os padrões morais que impõe à sociedade por ela criada à sua imagem (a imagem do nojo), a classe operária aventura-se com os cuidados devidos para evitar conflitos com os seus lideres "partidários"(?) - seja lá o que isso for...

os libertários, os aristocratas organizam-se na libertinagem e... a libertinagem é boa. disse-o o mestre.
daí se infere que os libertinos são os melhores habitantes desta desgraça a que alguns chamam mundo.
já dizia o simpatizante do sr. trotsky (nunca percebi o porquê)- andré breton: - só o prazer é divino!
e o sr. marquês, o de sade, disse coisas muito mais interessantes que não tenho pachorra para citar mais que pratico de bom grado. e se não o faço com maior regularidade é por falta de cúmplices (de jeito) ou de tempo e vida para cavalgadas que exigem bué do cabedal...

zé do estoril