[A propósito de me parecer que os novos condes andam nervosos, lembrei-me desta, saída de 2005.]
Uma das bandeiras da esquerda portuguesa dos anos 70 consistia na
promoção da emancipação do homem (leia-se proletariado - homem do povo).
Era um movimento que pretendia retirar à direita alguma base de
sustentação, minando a tradicional relação entre senhor e servo.
Quando
era criança lembro-me, que na zona onde vivia havia dois condes. Um
deles ainda o avistava de vez em quando. O outro, nunca lhe pus a vista
em cima.
O conde habitava uma casa enorme, tinha vastos terrenos,
tinha vida de burguês. Os que para ele trabalhavam habitavam casas
modestíssimas, trabalhavam de sol a sol, verão ou inverno, chovesse ou
não, geasse ou não, e não recebiam se não trabalhassem. Caso ficassem
durante algum tempo sem trabalho, valiam-lhes as galinhas, os perus, os
coelhos que iam criando.
Eu vivia com avós reformados, e, por
essa via, tinha uma vida de mais qualidade do que os meus colegas da
primária. A maioria deles (6 a 10 anos), vindos da escola (que só
ocupava umas 4 horas por dia), trabalhava nas fainas da casa apanhando
erva, alimentando os animais, mudando a cama dos animais, etc. Um
trabalho que hoje seria absolutamente inaceitável, mas que era o dia a
dia há cerca de 40 anos. O meu caso não ia além da pastagem de perus.
Tendo presente a fome do tempo da guerra que nos era relatado pelos mais
velhos, o meu trabalho e o dos meus colegas não passavam de uma
brincadeira face ao que os anciãos contavam.
A vasta maioria dos
meus colegas da primaria não passou da 4ª classe. Eu pertenci a um
pequeno grupo de meia dúzia de bafejados que fizemos os exames de
admissão à escola técnica e liceu (que corresponderia hoje a um exame de
admissão no segundo ciclo do ensino básico).
Voltando à carga inicial, sentia-se muito directamente o peso da instituição “condes”.
Os
condes não seriam parvos de todo. Penso não estar longe da verdade se
disser que haveria uma deferência respeitosa destes face aos
trabalhadores. Essa deferência não chegava evidentemente ao ponto de os
tornar plenamente sensíveis face às dificílimas condições de vida dos
trabalhadores da zona, mas esses trabalhadores sentiam-se, de alguma
forma, que eram tratados com alguma deferência pelos condes. Talvez o
sentissem por se lembrarem dos idos ...
Com o 25 de Abril
espalha-se o vírus da emancipação do homem. Penso que muita gente ficou
em pânico de ambos os lados da barricada. Os condes por razões óbvias.
Mas também muitos trabalhadores sentiam que as novas ideias de
emancipação os deixariam órfãos ... mais vale o diabo que se conhece ...
Os tempos passaram e nalguns casos mais noutros menos, a emancipação teve lugar e a influência dos condes esbateu-se.
Eram tempos em que uma direita mais ou menos caceteira queria perpetuar esta relação paternalista/exploradora com o trabalhador.
A
esquerda, regra geral, acabou, nesta matéria, sendo bem sucedida, e, em
abono da verdade também muita direita, mais ou menos burguesa mas mais
civilizada, acabou por alinhar numa relação mais bem nivelada com a
generalidade dos proletários de então.
Evidentemente que o filme
que acima recordo espelha, se as minhas faculdades de percepção não
falham (ou falharam) uma realidade local, bastante limitada no espaço e
no tempo.
Mas suponho que seja suficiente para abordar problemas relativos à dependência.
Sou
capaz de não estar muito baralhado se afirmar que a maioria da
população de Portugal desenvolve alguma espécie de mecanismo de
dependência, face a alguém ou a algo. Não sei se não será, simplesmente,
um mecanismo semelhante à dependência que, desde tenra idade, todos
tendemos a manter, durante pelo menos a menoridade, com nossos pais. A
verdade é que me intriga a dependência que a maioria dos portugueses
parecem demonstrar, e que me parece doentia, a futebol, telenovelas,
reality shows e outros programas de elevada toxicidade, música pimba,
chunga, de encher pneus ou penicos, até dependência religiosa face a
alguns comportamentos que suponho serem algo aberrantes.
Depois
do sucesso que a esquerda obteve na dinamização da auto-emancipação do
proletário, suponho que aquilo que então se esperava vir a ter lugar, a
evolução no sentido do assumir de uma identidade de cidadão, veio a
revelar-se um processo frouxo.
Enquanto por um lado a
generalidade da população se foi emancipando face às dependências
reinantes no panorama pré 25 de Abril, por outro foi aderindo aos vários
tipos de dependências já antes referidas. Se muito embora as
implicações dessas novas dependências tenham pouca relação às
anteriores, elas têm fortíssimas implicações indirectas no nível
cultural de todo o país.
Por nível cultural não entendo saber
quantos cantos têm os Lusíadas, mas cultura em relação a todos os campos
das letras e ciências.
Estando consciente de que, apesar de
tudo, o nível global cultural (médio) sofreu uma melhoria, suponho que
não terá sido suficiente para que tenhamos podido acompanhar o ritmo
(para já não falar em aproximarmo-nos) dos restantes países da Europa.
Voltando
à dependência, suponho que a globalidade da esquerda, não sei se
consciente ou inconscientemente, se tenha deixado lentamente escorregar
para a dinamização de um mecanismo em que passou a defender a elevação
do estado à posição de tutor do cidadão comum.
Para alguma
esquerda sindical, especialmente após a queda do muro de Berlim, este
mecanismo revelou-se capaz de auto-sustentar a promessa de um estado de
coisas em que, por um lado, um estado cada vez mais omnipresente e
“zelador” passa a poder justificar a sua própria dimensão, e por outro,
promete e ensaia um cada vez maior papel de tutor do cidadão comum. Este
comportamento é particularmente notório no ensino, (elevado a educação,
tal a fúria tutorizante), segurança social, e para com os cidadãos mais
desprotegidos. Este comportamento para com o ensino não é inocente. Ele
pretende garantir a “sustentabilidade” do estado de coisas.
Tudo
isto conduziu o estado a assumir uma relação paternalista para com o
cidadão ao arrepio de uma saudável relação adulta, de cidadão
emancipado, a caminho do exercício de uma salutar cidadania.
Tal
como fazem os adolescentes mal criados para com os progenitores, temos
todo um país a insultar o estado e a exigir dele, simultaneamente, tudo e
mais alguma coisa. E os governos, venham lá de onde vierem, mesmo que
se apercebam do problema, nem sabem para onde se hão de virar.
Suponho
que o estado de coisas em França tenha algum grau de paralelismo com o
que escrevo porque é exactamente ali que parece morar a mais infinita fé
no estado social “à moda da Europa” – dizem os seus defensores embora
suponha que uma boa parte dela não alinhe pelo disparate.
2 comentários:
Meu caro, você está, como soi dizer-se, ca pica toda. São umas atrás das outras! E a acertar em cheio ou, quando, a meu ver não, quase.
A propósito do que diz, que
"Com o 25 de Abril espalha-se o vírus da emancipação do homem. Penso que muita gente ficou em pânico de ambos os lados da barricada. Os condes por razões óbvias. Mas também muitos trabalhadores sentiam que as novas ideias de emancipação os deixariam órfãos ... mais vale o diabo que se conhece ..."
recordo-me de um texto que escrevi no Portugal e Outras Touradas sobre as lutas entre liberais e miguelistas.
http://aperoladanet.blogspot.pt/2010/10/republica-e-maria-da-fonte.html
Actores trocados, peça reformulada, mas nada de muito novo,
Faço minhas as felicitações a si endereçadas pelo nosso querido José Simões. O Manuel Graça afixou um belo retrato,não digo do povo português, que é uma entidade um bocado anónima, mas do Portugal profuno e superficial (digo com ironia entendível, ou seja o portugalinho interno, o dos intalectuais que num dão uma prácaixa, e o externo, o das teresinhas guilhormes e dos futrebóis marralheiros. Este texto, se houvesse um pingo de bom senso e de honestidade intelectual, devia ser lido nas escolas, ao invés de lhes correarem saramaguejantes paupérios e outras escarificações. Mas isto sou eu a sonhar...
Mochila
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