segunda-feira, 4 de junho de 2012

É ASSIM QUE SE FAZ A ESTÓRIA (1)



Mário Cesariny, O papá que veio do Leste (Col. João Garção)

E, para começar bem a semana, digo eu:


  DUAS CARTAS MC/ns E UM QUADRO, RECORDANDO  CESARINY


A Francisco da Gália (*) envia Mário Ibericus

Saúde.

A morada da Maria Helena é 34, R. l’Abbé Carton, Paris 14 ème. Deves enviar – istové – o nome que é de pores no sobrescrito, é VIEIRA e SZÈNES. Vale.

Cá veio a tua carta com a tua tradução do Rosemont(1)que é a beleza, nenhum cheiro a tradução, e o teu poema de O Livro das Cidades e respectas duas colagens. Tudo do fino. Segue nesta o que a isso se junta para a Voz Anarquista (2).
De minha parte vão e estão:

o LUNÁRIO DO SURREALISMO PARA 1990. É uma secção a ser continuada e cujas características apanharás à primeira leitura. E é um presente bom que faço aos teus e nossos amigos porque título assim não vem todos os dias e eu tinha-o de lado para a edição de um livro grande gizado nos mesmos moldes. Aliás, não desisto de fazer tal livro (que está quase feito, aliás outra vez).

um NOTÍCIAS DA CULTURA que espero te regozijará bastante e servirá de aviso grave aos e às OKAPIS (3) de Lisboa e Horizontes.

uma  PEQUENA CONTRIBUIÇÃO AO PROGRESSO DO MITO “DEUS-PÁTRIA-FAMÍLIA”, que já conheces de vista.

um ENSAIO DE SIMULAÇÃO DA DISLEXIA PROFUNDA, do Miguel de Castro Henriques.

um FERNANDO PESSOA POETA, que é a minha comunicação para a base naval de Portland. (Congresso sobre pensamento libertário – Universidade de Portland-Oregon)

Penso que este material sublime, junto ao teu do Livro das Cidades e a tradução do Rosemont, dará darão as duas páginas requeridas e mesmo alguns sobres para continuados noutras páginas. E julgo ser importante que saia junto, por ficarem tocados os vários pontos-estrêlas gerais. A menos que ainda possa ser pouco e se lhes possa dar mais. Acrescentarias das tuas lavras. Caso contrário, e sendo absolutamente exigido “diminuir”, proponho que a “vítima” seja o Rosemont e se lhe diminua o texto. (…)
 As comunicações eu Botas (4) parecem-me comprometidas outra vez. Assim que te a ti mando, para que por tua vez sejas tu a mandar, como no princípio. Por fim, achava preferível que a esta página ou páginas se não apuzesse nenhum título especial. Apareceriam no que são como são. “Voz Anarquista” já é mais do que bom. Mas como há textos que não saem assinados (aqui vão três) poder-se-ia pôr, num cantinho, “página” (ou páginas) coordenada(s) por Fulano e Fulano”.

Como vão as tuas endoenças? Eu mantenho algumas. E as bodas do Ceia (5) quando são? Recita-lhe durante a cerimónia “O Casamento do Céu e do Inferno” do William Blake!

  Abraços para ti, para a Flora, e para o nubente

                                                                Mário (manuscrito)

Enfim, diz que recebeste, e o que achas do recebido.

                                                                                Abril 7 (manuscrito)

Magníficos, os “exemplares especiais” que fizeste das nossas comunicações Portland!! (6) (manuscrito)


Notas -   (*) Refere-se a NS, cujo nome civil é Francisco.
  
  1. Refere-se ao ensaísta americano Franklin Rosemont
  2. Jornal que se propusera publicar um suplemento literário orientado por MC e NS. Atarantados com a qualidade das colaborações (que não tinham nada a ver com “militâncias”) abandonaram a ideia, borregando.
  3. Referência irónica à ensaísta sul-americana Maria Lucia Lepecki, que na altura dispunha na praça lusa de bastante notoriedade.
  4. Refere-se ao pintor e poeta Mário Botas, nessa altura bastante doente.
  5. Refere-se ao confrade que escrevia textos sobre música moderna com o pseudónimo de A.J.Silverberg.
  6. Refere-se ao Congresso organizado pela Univ. de Portland (Lewis & Clark College), em que ambos apresentaram comunicações – MC sobre Fernando Pessoa, NS sobre  as Religiões Reveladas

***


26 Set. 84

Mário:

   Apresso-me a escrever-te para te dizer que, com efeito, o papel do Rosemont é de facto de mais. É, pelo menos, um bom serviço prestado aos kgb e companhia, sob a sua capa anarcaqueirante.
   Não alinho nisso; seria bom compreender-se que, também eu, não concordo com a sua inclusão no Catálogo; o fantástico e o maravilhoso, sendo a inteligência e a poesia em funcionamento prático, não se compadecem com a vizinhança de pistolinhas de Chicago. Aquilo não é revolucionarismo, é politiquice às três matracadas.
   Creio que é urgente mandares dizer a Rosemont que a Exposição nada tem a ver com anarquistas federados ou só de chapelinho; para que tudo não se complique e comece a ficar macacal. E dê merda.
   Por outro lado, importa dizer de uma vez por todas: eu não sou anarquista, explicando: sou libertário porque surrealista. A minha estadia junto dos anarquistas ibéricos foi um equívoco provocado pelo facto de eu julgar que as pessoas que se dizem livres têm poesia na cabeça e no corpo, trocando: que são a própria poesia.
 Quem são a própria poesia são os Poetas. (…). Os outros podem sê-lo eventualmente, mas não se tem notado nada. São anarquistas de aviário ou pistoleiros puros e simples. A Anarquia, para mim, teria de ser a poesia em movimento. Mas aqui (ou em todo o lado? Espero que não) é só a politiquice duma dada extrema. Que vão para a pôrra, definitivamente. O único anarquista verdadeiro é o homem criativo, o Poeta, que não se curva a cores e traquitanas. E disse, caraças!
  Concordo pois contigo e Carlos que importa levar a Rosemont as “actas de Niceia” (passe a piada!). O texto dele parece-me menos surrealista que exaltado. E a exaltação assim é meia-mantença de um outro conformismo. Prefiro os índios e os esquimós, mais que os americanos em (pseudo?) rebeldia. Tenho a ver com os Dogons (assim como com Basile Valentim) nada tenho a ver com Marx e Lenine. E pronto, punheta!
  Cago tanto na LSD como nos manifestos eleitoralistas. Tanto me urino nas bombas de compra ou de fabrico próprio como nos artefactos dos cabrões dos militares e estados-maiores. E acabei.

  Amanhã te mandarei o resto da tradução do Calas. Acredito no valor do livro dele se o dizes. Aliás estes textos dele não são maus, são só horrivelmente ingénuos (embora necessários, e além disso a inteligentsia de cá é tão estúpida que não irá dar por nada). Depois um dia falaremos disso.
  Os meus textos que apontas não estão publicados em nada a não ser as cópias fotocopiadas que te mandei – com excepção do Picasso.
  Agrada-me que tenhas colocado esses para publicação no catálogo.
  Talvez dentro deste tempo eu tenha dinheiro para editar um livro (que dizes a “Objectos inquietantes” ou outro?) Fala disto. Procura por favor uma tipografia que faça BARATO, PÁ. Davas capinha? Então vê lá isto. Estou um bocado melhor, depois falaremos de viva voz.
  E viva a Poesia, a revolta e a beleza sem amarras nenhumas.
  E vejam lá isso sobre o Rosemont. Se não, qualquer dia estão a fabricar bombas atómicas de bolso. O que é tão mau como o resto.

                   Abraço grande do     Francisco   (nome de NS,  também manuscrito)

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