TRÊS PALAVRAS
Há, neste acervo, um verso que a meu
ver descreve com exactidão o mundo da escrita de António Salvado: “só a natureza purifica os sons”, diz ele a dada altura no poema dedicado a
Claudio Rodriguez. (Claudio Rodriguez, sublinho, ou seja: um dos poetas
europeus onde a natureza se confrontou decisivamente com os sons duma
modernidade assumida, reencaminhada nos troços vicinais de um continente que
não perdera de vista a claridade da Grécia mas sabia ser impossível não a
tentar reconverter através do mergulho achado em Rimbaud e Dylan Thomas).
Poeta da natureza, António Salvado? Sim, mas
também da linguagem que a certifica, perpassa e ultrapassa. Conhecedor dos
clássicos, sempre soube viajar – como fica patente nesta pequena antologia –
pela comovida desconstrução da escrita.
E, assim, é um contemporâneo tanto dos que
se foram como de todos os outros que a seguir irão vindo.
Por último e ainda no continente da Poesia,
gostaria de relevar o trabalho incontornável de AS enquanto tradutor – e dou ao
termo trabalho,
aqui, o seu exacto perfil e conteúdo não só de labor mas de encantamento partilhável, uma vez que é disso
que se trata: ser António Salvado, como a meu ver tem sido, o poeta do seu
poeta vertido em português sem jaça e com o ritmo próprio e a figura de quem
escreve como se em língua lusa este escrevesse.
G. Chirico, Ariadne
EPITÁFIO
PARA MINHA MÃE
Porque
sabias os caminhos
que
encontrarias na viagem,
sem
desaires nem labirintos
a
tua vida foi a simples
maneira
de atravessares
no
mundo brenhas e neblinas.
Não
precisavas de milagres
para
aqueceres a tua crença:
afagos
de serenidade,
os
dias chegavam passavam
com
a mesma limpidez quente
e
mansa que a fé torna clara.
Desfolho
rente à tua campa
os
ramos de malvas: lembranças
do
cálido peregrinar
das
contas puras do rosário
que
os dedos do amor rezaram
à
espera de um céu alcançado.
Arcimboldo, Primavera
CASA
DO AMOR
Foi
nas perenes coisas que aprendi
a
ser: a casa do amor cercada
de
ruas que subiam junto ao fim
do
céu que sempre mais se prolongava,
de
longo mudos maternais jardins
onde
as eternas flores eram lagos
de
fragrância ofegante colorida
e
os lagos sol em água mergulhado.
E
nela: o pão cantado sobre a mesa,
a
bilha da ternura a renascer,
a
pureza do linho a dedilhar
as
palavras nos lábios entoadas…
deito
longe a saudade: permanece
a
casa do amor, em mim, perene.
Michael Parkes, Juggler
MEDITAÇÃO
(à
memória de Claudio Rodriguez)
Dos
olhos e das mãos brotam as coisas:
inocentes
paisagens onde a vida
e
a morte se insinuam e comprazem.
Feitas
indagação, elas entregam
-
mesmo longínquas – o fluir constante
do
sangue atravessando o pensamento.
De
há muito que o sabemos caminhando:
somente
a natureza purifica os sons
da
chama inviolável que destrói
enganos:
uma flor desabrochada,
rapariga
no curvo do distante,
calor
do oiro na melancolia.
Daí,
que a claridade estenda os braços
a
resvalar-se à voz: e invada os veios
exaltados
da pureza e bafeje
para
que ouçamos dela o sussurrar,
como
um astro súbito inesperado,
como
a verdade plena de harmonia.
Em
segredo, o pulsar do coração
traça
novos destinos entre areia,
reconstruindo
a casa à beira do abismo
solidifica
a água das correntes.
Em
segredo. Os olhos abrem-se mais
e
as mãos, hirtas p’lo frio passageiro,
modelam
ouro espaço e outro tempo
para
que o canto seja eternidade.
Nota - Com maior número de poemas, acervo
publicado na “DiVersos – revista de poesia e tradução” e no “TriploV”
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