Pedro Oom, Retrato de Artur do Cruzeiro Seixas (ilustração)
“Sacavém,
24. 3. 73
Caríssimo Nicolau
Não
consigo tratar-te por Francisco – muito menos por Garção, pois tendo havido já
um na literatura e na poesia, aliás muito chato, parece-me que 2 serão de mais.
Acabado
este preâmbulo tenho a dizer-te o seguinte: a ideia “exposição Carlos Martins e
Lud” aí parece estar em
marcha. No dia da inauguração poderia fazer-se o recital.
Esta ideia já está a ser posta por mim em marcha. Falei à
Júlia Chaves. Concordou com a estadia num fim-de-semana e os 500 paus que darão
somente para a gasolina. Ela tem um carro “ultra bright”.
Terás de ajudar um pouco:
1º
Manda “Balada de Portalegre” do Régio, se possível com nota biográfica.
2º Diz
para quando é possível esta manifestação (nunca antes de um mês).
Agora outro assunto: pediram-me no “& etc”
que te contactasse para o seguinte: pretendem expôr colecções dos números do
“& etc” em várias sociedades de recreio, juntamente com os boletins de
inscrição para sócios. Como presidente ou influente do Clube local, podes
escrever para o “& etc” propondo exactamente o que foi dito atrás.
Espero que o faças sem grande demora pois
estão muito interessados nesta espécie de promoção.
Manda também (para mim) um poema teu que te
pareça o melhor para o recital. Igualmente do nosso amigo daí, cujo nome me
esquece sempre.
Espero notícias breves.
Um abração do
Pedro”
Notas
1. Esta carta manuscrita vinha acompanhada dos poemas
que a seguir se dão a lume.
2. A exposição em projecto não se realizou, uma vez
que o Governo Civil a impediu. Foi substituída por uma outra de recurso, tendo
sido mostrados poemas-colagens a exibir em Coimbra – e ali também proibidos
ainda que tivessem sido noticiados no jornal “República”.
3. No decorrer da “vernissage”
ao princípio da tarde, foram lidos poemas de Régio, A.M.Lisboa, ns e Pedro Oom, que acabara por
não se deslocar a Portalegre. Finda a função, ns e o vice-presidente da
colectividade Manuel Bagina Garcia, falecido em 2007, foram detidos pela
polícia “para averiguações”. Foram postos
em liberdade na noite do dia seguinte com a indicação de que “na próxima iriam para Peniche”.
Os dois
primeiros poemas seriam depois do 25 de Abril dados a lume no semanário “A
Rabeca”, depois defunccionada pelos próceres políticos que a haviam tomado
“revolucionariamente”, saneando ns de
imediato.
Poema
Há um ar de espanto
no teu rosto em silêncio pequenas pausas
entre nós e as
palavras
que desfiamos
Quando o silêncio
(pausa mais longa
que nos contrai o peito)
cai bruscamente
duas mãos agitam-se
meigamente as nossas
e os mendigos, todos
os mendigos
espreitam ao postigo
do teu pequeno apartamento
coroados de rosas e
crisântemos
É o momento
em que afirmamos a
realidade das coisas
não a que vemos na
rua
e que sabemos
fictícia
mas a outra
aurora cintilante
que põe estrelas no
teu sorriso
quando acordas de
manhã
com um sol de
angústia na garganta
acredita
nada nos distingue
entre a multidão
anónima a que pertencemos
embora
o fotógrafo teime
sempre
em nos oferecer uma
esperança
- fluido imaterial
que nem mil anos
poderão condensar -
O nosso rasto
mal se apercebe na
areia
condenados ao
fracasso
pequena glória dos
pequenos heróis deste tempo
ainda aspiramos
no entanto
a ser o índice deste
século
único sinal humano,
florescente e salubre
de contrário
seremos apenas
um halo de vento
arco-íris de luto
ou estrada para
sedentários
É ocioso
preparar a objectiva
que nos vai condenar
a um número
nesta cidade onde
cada homem
é escravo de uma arma
Ocioso
avivar as flores do
cenário
encher de luar o
jardim do nosso afecto
Só um acaso
nos poderá revelar
por isso
fechemos o rosto
meu amor
Poema
Os camaradas
saíram para a rua
com os bolsos cheios
de serpentinas
(o calendário
estava trocado
e de Entrudo
nicles
nem um só cabeçudo
ou máscara
até o polícia de giro
com a dignidade sui generis
dos pequenos autocratas
participou na patuscada
depois do jogo
- o Benfica foi eliminado)
Os camaradas
compraram fatos novos
nos alfaiates dernier-cri
e botaram as
serpentinas
no lixo
para não deformar
os bolsos (novos).
História do meu
boneco
Cresceu comigo
neste espaço que se
diz português
e neste tempo
(histórico)
Maricas (era de
esperar)
mas rebelde como um
felino
ninguém se lhe pôs
inteiro
ficou sempre um
bocadinho
porque rangia a
dentadura.
Deixou de acreditar
na Santíssima Trindade
quando notou as
primeiras brancas do púbis
mas já era muito
tarde para ir às “meninas”
pelo que aderiu aos
movimentos parlamentares
- lixou-se!
Depois de 45
afundou-se na
continuidade
engordou (discretamente)
caíram-lhe os últimos
molares
farfalhou o bigode, à
Guarda Nacional antiga
e hoje
para fingir que
é ainda o teso,
levanta a calva
luzente
e bate o pé
ao peso dos
argumentos.
Sacavém,
Março de 1973
Pedro Oom
2 comentários:
Sim, Sem Comentários. Para quê? Está tudo ali, aqui: um país que se diz de poetas, mas que os mata pela tristeza, pela marginalização, pela filhadaputice dos seus maiores. Sim, também há por aí versejadores. Mas na sua maior parte são apenas rapazes de gravata (versão nortenha de vates políticos em verso) ou de pedrinhas na orelha (versão provinciana de aldeia sulista para se tornar premiável). Os que sobram são para levarem porrada dos que fazerm a chuva e o bom tempo. Uma caralhada democrática, claro. E biba a republica.
Filipe Nunes
Ah ganda Filipe Nunes! Arrefinfa-les!
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