quarta-feira, 27 de junho de 2012

É Assim que se Faz a Estória (2)


Pedro Oom, Retrato de Artur do Cruzeiro Seixas (ilustração)



 Lembrança de Pedro Oom


  “Sacavém, 24. 3. 73

  Caríssimo Nicolau

   Não consigo tratar-te por Francisco – muito menos por Garção, pois tendo havido já um na literatura e na poesia, aliás muito chato, parece-me que 2 serão de mais.
   Acabado este preâmbulo tenho a dizer-te o seguinte: a ideia “exposição Carlos Martins e Lud” aí parece estar em marcha. No dia da inauguração poderia fazer-se o recital. Esta ideia já está a ser posta por mim em marcha. Falei à Júlia Chaves. Concordou com a estadia num fim-de-semana e os 500 paus que darão somente para a gasolina. Ela tem um carro “ultra bright”.
  Terás de ajudar um pouco:
  1º  Manda “Balada de Portalegre” do Régio, se possível com nota biográfica.
  2º  Diz para quando é possível esta manifestação (nunca antes de um mês).
 Agora outro assunto: pediram-me no “& etc” que te contactasse para o seguinte: pretendem expôr colecções dos números do “& etc” em várias sociedades de recreio, juntamente com os boletins de inscrição para sócios. Como presidente ou influente do Clube local, podes escrever para o “& etc” propondo exactamente o que foi dito atrás.
 Espero que o faças sem grande demora pois estão muito interessados nesta espécie de promoção.
  Manda também (para mim) um poema teu que te pareça o melhor para o recital. Igualmente do nosso amigo daí, cujo nome me esquece sempre.
  Espero notícias breves.
  Um abração do
                                                                                            Pedro”

Notas


1. Esta carta manuscrita vinha acompanhada dos poemas que a seguir se dão a lume.

2. A exposição em projecto não se realizou, uma vez que o Governo Civil a impediu. Foi substituída por uma outra de recurso, tendo sido mostrados poemas-colagens a exibir em Coimbra – e ali também proibidos ainda que tivessem sido noticiados no jornal “República”.

3. No decorrer da “vernissage” ao princípio da tarde, foram lidos poemas de Régio,  A.M.Lisboa, ns e Pedro Oom, que acabara por não se deslocar a Portalegre. Finda a função, ns e o vice-presidente da colectividade Manuel Bagina Garcia, falecido em 2007, foram detidos pela polícia “para averiguações”. Foram postos em liberdade na noite do dia seguinte com a indicação de que “na próxima iriam para Peniche”.
   Os dois primeiros poemas seriam depois do 25 de Abril dados a lume no semanário “A Rabeca”, depois defunccionada pelos próceres políticos que a haviam tomado “revolucionariamente”, saneando ns de imediato.





Cruzeiro Seixas, No dia a seguir ao nosso casamento, 1967



Poema

Há um ar de espanto
no teu rosto em silêncio    pequenas pausas
entre nós e as palavras
          que desfiamos
Quando o silêncio (pausa mais longa
           que nos contrai o peito)
cai bruscamente
duas mãos agitam-se meigamente     as nossas
e os mendigos, todos os mendigos
espreitam ao postigo do teu pequeno apartamento
coroados de rosas e crisântemos

É o momento
em que afirmamos a realidade das coisas
não a que vemos na rua
e que sabemos fictícia

mas a outra

aurora cintilante
que põe estrelas no teu sorriso
quando acordas de manhã
com um sol de angústia na garganta

acredita
nada nos distingue
entre a multidão anónima a que pertencemos
embora
o fotógrafo teime sempre
em nos oferecer uma esperança
- fluido imaterial que nem mil anos
poderão condensar -

O nosso rasto
mal se apercebe na areia
condenados ao fracasso
pequena glória dos pequenos heróis deste tempo
ainda aspiramos
          no entanto
a ser o índice deste século
único sinal humano, florescente e salubre
de contrário
seremos apenas
um halo de vento
arco-íris de luto
ou estrada para sedentários
É ocioso
preparar a objectiva
que nos vai condenar a um número
nesta cidade onde cada homem
é escravo de uma arma
Ocioso
avivar as flores do cenário
encher de luar o jardim do nosso afecto
                      Só um acaso
                      nos poderá revelar
                 por isso
                        fechemos o rosto
                                                   meu amor





Cruzeiro Seixas, Projecto para um Tejo à nossa medida, 1966



Poema

Os camaradas
saíram para a rua
com os bolsos cheios de serpentinas

            (o calendário
            estava trocado
            e de Entrudo

                        nicles
              nem um só cabeçudo
              ou máscara
              até o polícia de giro
              com a dignidade sui generis
              dos pequenos autocratas
              participou na patuscada
              depois do jogo
              - o Benfica foi eliminado)

Os camaradas
compraram fatos novos
nos alfaiates dernier-cri
e botaram as serpentinas
no lixo

para não deformar
os bolsos (novos).


História do meu boneco

Cresceu comigo
neste espaço que se diz português
e neste tempo (histórico)

Maricas (era de esperar)
mas rebelde como um felino
ninguém se lhe pôs inteiro
ficou sempre um bocadinho
porque rangia a dentadura.

Deixou de acreditar na Santíssima Trindade
quando notou as primeiras brancas do púbis
mas já era muito tarde para ir às “meninas”
pelo que aderiu aos movimentos parlamentares
- lixou-se!

Depois de 45
afundou-se na continuidade
engordou (discretamente)
caíram-lhe os últimos molares
farfalhou o bigode, à Guarda Nacional antiga
e hoje
para fingir que é   ainda o teso,
levanta a calva luzente
e bate o pé

ao peso dos argumentos.


                                   Sacavém, Março de 1973



Pedro Oom

2 comentários:

Anónimo disse...

Sim, Sem Comentários. Para quê? Está tudo ali, aqui: um país que se diz de poetas, mas que os mata pela tristeza, pela marginalização, pela filhadaputice dos seus maiores. Sim, também há por aí versejadores. Mas na sua maior parte são apenas rapazes de gravata (versão nortenha de vates políticos em verso) ou de pedrinhas na orelha (versão provinciana de aldeia sulista para se tornar premiável). Os que sobram são para levarem porrada dos que fazerm a chuva e o bom tempo. Uma caralhada democrática, claro. E biba a republica.

Filipe Nunes

José Gonsalo disse...

Ah ganda Filipe Nunes! Arrefinfa-les!