domingo, 10 de junho de 2012

Crónicas do irreal quotidiano - O biscate





Existem recursos e actividades que, embora universais, têm no nosso país uma tal aceitação e implantação que, pelo seu prolongamento temporal, vêm a constituir factores de caracterização do espírito e das predisposições nacionais, acabando alguns deles por dar origem a empreendimentos de maior ou menor sucesso e durabilidade. É o caso do biscate, cujo paradigma maior se encontra nos Descobrimentos. A má gestão, a consequente decadência e o fim conhecido desse Grandioso Biscate, posteriormente elevado pela evolução histórica a alturas místicas, determinou, porém, as suas presentes formas e dimensões, mais comezinhas e reduzidas, com objectivos que nunca ultrapassam (com sorte!) o médio prazo.

Vivendo cada um de nós em Portugal, no meio dos portugueses, achamo-nos sempre tristonhos, melancólicos, desalentados, mesmo preguiçosos. Os outros, os “lá de fora”, é que inventam tudo, trabalham como deve ser; nós não passamos de uma cambada de monos, a começar pelos tipos que moram no andar baixo, para não falar dos do andar de cima e dos do lado. Bem, reconheça-se, para os copos e a sardinhada não seremos má companhia, umas larachas e tal, mas fora isso…

E não é verdade! Também nós somos grandes. Porque o ambiente de permanente efervescência no plano do biscate, cultural e institucionalmente estabelecido, acicata a imaginação não apenas no plano conceptual mas também no da respectiva concretização, até ao golpe d’asa que o coloca na confluência das fronteiras da técnica, da ciência e da arte. Mercê do qual cada português é, nos seus mínimos pormenores, a incarnação do que poderíamos designar como o "biscatismo".

 Nesse sentido, poderíamos afirmar que qualquer português é ideologicamente um biscatista e que, deste modo, Portugal é, hoje, “O Biscate” — o biscate de todos os portugueses. Transformar um país inteiro numa enorme força económica dirigida, voluntária e espontaneamente, para uma única forma de actividade, significa a existência de uma união nacional que nem Hitler nem Estaline nem, muito menos, Salazar alguma vez imaginaram lograr sem terem que usar a força. E se uma nação foi definida, até hoje, como um conjunto de pessoas unidas por uma língua que traduz a sua experiência comunitária secular, haverá agora que — ao menos no caso luso — acrescentar à língua um ramo de actividade económica: o biscate.

Só um “estrangeirado” se diz um “indignado”. Um verdadeiro português não se indigna: biscata. Nenhum português à séria é um “indignado” porque todo o português é um biscateiro.

Pelo que, ao contrário dos meus vizinhos e compatriotas, não fiquei nada admirado, antes diria cheio de patriótico orgulho, quando ouvi o que dizia, a uma cliente, a mulher de um polícia que é proprietária de um salão de cabeleireiro que fica ao lado do banco que fica a uns 300m da minha casa que foi assaltado seis meses atrás. Informação, portanto, inquestionavelmente fidedigna, uma vez que provém do cônjuge da autoridade sem ser mediatizada pela comunicação social.

Segundo a senhora, o assaltante foi preso após algumas averiguações. Funcionário de uma empresa dos arredores, costumava ir tasquinhar a uma tasquinha onde tasquinham também diariamente os polícias da esquadra da terra. E, enquanto os ia ouvindo falar sobre as diversas ocorrências ocorridas e das que supunham que viriam a ocorrer, outros pormenores se lhe foram gravando no espírito, como, principalmente, o dos horários das diferentes brigadas, levando-o à conclusão de que existia um pequeno período durante o qual todos os elementos policiais disponíveis se encontravam à mesa, presos à vital necessidade de se alimentarem. Um clarão lhe rebrilhou então na mente, desde há muito em busca do biscate que daria o necessário desafogo à sua situação financeira e, em simultâneo, lhe alimentaria o ego biscateiro com a garantia de um lugar de inquestionável relevo na tradição nacional.

Da inspiração à prática não terá tardado muito, dado o conjunto e a importância das informações que recolhera. Fez o sacrifício. Passou a prescindir de parte ou mesmo da totalidade do tempo destinado pela empresa à refeição do meio do dia e — engolindo à pressa a comida, com riscos acrescidos de úlcera gástrica, ou, quem sabe, levando na mala, junto à pistola, a sandocha carinhosamente preparada pela avó que iria mordiscando nervosamente durante a acção, podendo engasgar-se com gravidade — inaugurou uma inaudita e inovadora forma de biscate, assaltando os bancos das redondezas à hora do almoço.

Contudo, a par do orgulho e da fé neste país que me encheram o peito, uma apreensão superior me ensombrou de imediato o espírito: a de saber se a sua prisão prematura não terá posto fim definitivo a um futuro grande cidadão deste país, que nos apontaria caminhos inovadores e decisivos de lusitana raiz e alargados desenvolvimentos. É que ninguém pode prever o que um dia Deus, o Universo, ambos ou sabe-se lá quem mais, contarão das acções de cada um de nós…



2 comentários:

Anónimo disse...

"É que ninguém pode prever o que um dia Deus, o Universo, ambos ou sabe-se lá quem mais, contarão das acções de cada um de nós…". Sim...mas pode tentar-se saber. E eu diria que o universo - quanto a Deus não me pronuncio, que é entidade que me ultrapassa totalmente - é capaz de contar mais ou menos isto: "Visitei muitos países da Terra. E os portugueses que lá conheci uns mais e outros menos, eram gente respeitada no respectivo ramo, queridos na comunidade autóctone e bem sucedidos na profissão. Não biscateira. Pelo que, concluo: vivendo numa sociedade não dominada pelas três graças que sempre mandaram em Portugal (a beatice mística, a beatice de "boas famílias" e a beatice da repressão castradora e hábil do suave safanão a tempo, ou seja a temível trilogia Deus, Pátria e Família)o português ergue a cabeça,pois sente então o que é ser Homem (sem ter que interiorizar e exteriorizar o "respeitinho" necessário para não ser defenestrado)e toma o seu verdadeiro rosto de ser humano e social.
Tenho visto emigrantes voltando de férias. Assim que passam a fronteira, dá-se como que uma mutação: retomam o seu ar de "servos da gleba", de pessoas que sabem que doravente estão de novo sob a férula de um ambiente senhorial implacável. Daí que como Virgálio Martinho disse num suelto muito lúcido: "Os portugueses só lá fora é que se desatam". Pois, com efeito, há séculos que vivem sufocados - mesmo quando gritam noe estádios ou na rua (geralmente embobados pelos sindicatos e partidões que habilmente os enquadram ou dominam).Para tudo dizer: nunca aqui houve respeito real pelas pessoas do quotidiano, nunca houve real democracia e muito menos verdadeira Liberdade.

Elísio Arruda

Joaquim Simões disse...

Elísio Arruda:

Assim que voltamos a Roma, perdão, a Portugal, temos que ser romanos, perdão, portugueses.