Era sob este
nome genérico, através dos dias da semana que, nos meus tempos de
estudante, havia uma série de relatos na biblioteca da Escola (do estabelecimento
de ensino, como depois passou a dizer-se segundo alguns especialistas,
para o nome ficar mais parecido com o perfil comercial que hoje tem
(porque lho deram...) esta sociedade em que uns vivem e outros vegetam.
Estabelecimentos
de ensino, estabelecimentos de saúde, estabelecimentos
religiosos, estabelecimentos de justiça...Enfim - e o que é pior é
que nem há a explicitação formal, adjectiva, de tal globalidade expressiva ser
tão-só e humanizadamente uma recorrência discursiva, de qualificação inocente.
Como muito
bem referiu John Avildsen no seu excelente thriller "A
Fórmula" (protagonizado por George C.Scott e Marlon Brando), "Hoje
por hoje somos todos apenas clientes...". E isto é no ocidente, onde
mal que bem ainda vai existindo, embora muito entorpecida, uma
democracia tendencial ou formal. Imaginem o que seria numa Albânia ou numa
Roménia de antes da queda, ou numa actual Coreia do Norte ou numa
Birmânia militarizada ou numa nação do novo mundo capturada por barões da
droga...!
Para
além da nossa íntima hombridade, que pode sintetizar-se nesta citação de
Bernardino Machado ("Não basta, para nossa dignidade humana,
erguermo-nos na atitude erecta - devemos sustentar-nos nela"), na
verdade nós temos ainda "armas miraculosas", como dizia Júlio
Cortazar, para resistir às trevas em que tentam enlear-nos: e uma delas é a
poesia - não o lirismo choramingas ou pseudo-filosofante de tanto vate que
apenas visa a notoriedade mediante a sua versejação, mas a Poesia que se
consubstancia na incursão por novos mundos de conhecimento e de dignidade
através da palavra e da frase numa ordenação consequente, inspirada e criadora
de novas iluminações interiores. E que nada tem a ver com o repisar monocórdico
e trapalhão de políticos em verso, de sacristãos metafísicos amparados
e publicitados por um compadrio corporativo de oficiais do mesmo ofício...camuflado
e tarimbeiro.
Para
uma "sexta-feira de aventuras" no continente salubre da
palavra poética, prefácio de um fim-de-semana que vos desejo repleto de altos
contentamentos, proponho-vos hoje estes poemas de autores de excepção os
quais, nas minhas horas, tive o gosto e a honra de traduzir e apresentar
no espaço português.
ACHADO
ENTRE OS PAPÉIS DE FAMÍLIA
Sonhei
tanto, tanto que já nem sequer aqui estou.
Não
me façam mais perguntas, não me atormentem mais.
Não
me acompanhem neste meu calvário.
Não
me é dado explicar quais as ordens que tenho.
Nem
mesmo me assiste o direito de pensar nisso,
Há
muito tempo já que me levanto e parto.
Há
uma permissão da morte, e ei-la que chega.
Na
curva da rua que vai dar à noite é que a espero.
O
mar vai estar de novo nos últimos terraços.
Um
candeeiro de novo aceso sente o desejo das trevas.
Um
passo no empedrado. A sombra dele precede-o
E
deita-se sobre mim, a cabeça no meu coração.
Ali
está ele.
Sempre
de chapéu redondo, sempre de saco na mão
Tal
como era no dia em que regressou de Itália.
Já
lhe não vejo os olhos. Já me não fala.
Eis
que rolo até ele como uma obscura pedra.
Não
consigo atravessar a sua sombra.
Portaste-te
como devias? E desde então que fizeste?
E
porque não subiste?
Todos
os dias ia ver se chegavas e não chegaste nunca!
Ele
nada diz sobre tudo isto.
Mas
tudo nele me diz: lembra-te!
Sobre
ele a noite tornou a fechar-se.
Léon-Paul Fargue
O LUTO A ALEGRIA
Os amigos que
estão
no seu pé de
página
como em
caixão florido
pelos tempos
futuros
têm de nós o
gesto mais perfeito -
um sorriso
transido mas mesmo assim
verdadeiro
e muitas mãos
para afagar lembranças
e muitos
dentes luzindo para criar o verão
e muitos
olhos em repouso para dizer que é tarde
e muitos
gritos para dizer que é cedo
e que é a
hora de acordar
e de dormir
porventura
e de bailar
entre as árvores
e de correr
entre as sombras
e a luz que
elas provocam
e de sofrer
um pouco
um pouco
ainda
como crianças
sem remorso sem dor sem amargura
de novo em
viagem
sem efígie
sonhada
e já
desaparecida.
Jules Morot
MAPA ASTRAL
Observa
quanta face te rodear. Contudo
em
nenhum rosto colhas ódio ou ilusão.
Na
tarde, voa alto o pássaro mais humilde
Se
por si mesmo voa, com ou sem madrugadas.
Não
faças dos teus olhos a máquina mortífera
sobre
o hoje e o ontem, o aqui e o acolá
ou
das mãos uma sombra para o destino entre
as
falésias e a bruma da hora iniciadora
vazia
de sinais nos parques onde o Verão
tranquilamente
cessa, se enovela ou revive.
Recorda
com humildade as árvores junto ao rio
recorda
uma frugal refeição numa viagem
Há
em todos os tempos coisas que vão nascendo
sem
que sejam precisos a alegria e o pranto.
É
bem verdade que a dor nos pode oferecer tudo
se
o campo inutilmente se cobre de ramagens negras
Mas
a ausência não fere, se nas praias indivisas
ou
sobre os meridianos as ondas se levantam.
É
quando o mar se afasta que sentimos por vezes
uma
interrogação, mesmo uma breve dúvida.
Que
mais saberemos nós, pobres irmãos do vento
do
grande reino ausentes sem que a mágoa nos mate
Que
poderemos nós, buscando para sempre
a
terra sem promessas da manhã derradeira?
Pierre Grenier
A
VIAGEM DERRADEIRA
…E partirei. E ficarão os pássaros
cantando;
e ficará o meu quintal, com a sua
árvore verde
mais o seu poço branco.
O céu, todas as tardes, estará azul e
calmo;
e tocarão, como esta tarde estão
tocando
os sinos do campanário.
Irão morrendo aqueles que me amaram;
e a cada ano se fará novo o meu
povoado;
e no tal recanto do meu quintal
florido e calado
o meu espírito vagueará, nostálgico…
Eu partirei; e ficarei só, sem lar,
sem a árvore
verde, sem o poço branco
sem o céu azul e calmo…
E ficarão os pássaros, cantando.
Juan Ramón Jiménez
Fotografias de Henri Cartier Bresson
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