sexta-feira, 29 de junho de 2012

POEMAS PARA O FIM-DE-SEMANA




Era sob este nome genérico, através dos dias da semana que, nos meus tempos de estudante, havia uma série de relatos na biblioteca da Escola (do estabelecimento de ensino, como depois passou a dizer-se segundo alguns especialistas, para o nome ficar mais parecido com o perfil comercial que hoje tem (porque lho deram...) esta sociedade em que uns vivem e outros vegetam.

  Estabelecimentos de ensino, estabelecimentos de saúde, estabelecimentos religiosos, estabelecimentos de justiça...Enfim - e o que é pior é que nem há a explicitação formal, adjectiva, de tal globalidade expressiva ser tão-só e humanizadamente uma recorrência discursiva, de qualificação inocente.

  Como muito bem referiu John Avildsen no seu excelente thriller "A Fórmula" (protagonizado por George C.Scott e Marlon Brando), "Hoje por hoje somos todos apenas clientes...". E isto é no ocidente, onde mal que bem ainda vai existindo, embora muito entorpecida, uma democracia tendencial ou formal. Imaginem o que seria numa Albânia ou numa Roménia de antes da queda, ou numa actual Coreia do Norte ou numa Birmânia militarizada ou numa nação do novo mundo capturada por barões da droga...!

 Para além da nossa íntima hombridade, que pode sintetizar-se nesta citação de Bernardino Machado ("Não basta, para nossa dignidade humana, erguermo-nos na atitude erecta - devemos sustentar-nos nela"), na verdade nós temos ainda "armas miraculosas", como dizia Júlio Cortazar, para resistir às trevas em que tentam enlear-nos: e uma delas é a poesia - não o lirismo choramingas ou pseudo-filosofante de tanto vate que apenas visa a notoriedade mediante a sua versejação, mas a Poesia que se consubstancia na incursão por novos mundos de conhecimento e de dignidade através da palavra e da frase numa ordenação consequente, inspirada e criadora de novas iluminações interiores. E que nada tem a ver com o repisar monocórdico e trapalhão de políticos em verso, de sacristãos metafísicos amparados e publicitados por um compadrio corporativo de oficiais do mesmo ofício...camuflado e tarimbeiro.

 Para uma "sexta-feira de aventuras" no continente salubre da palavra poética, prefácio de um fim-de-semana que vos desejo repleto de altos contentamentos, proponho-vos hoje estes poemas de autores de excepção os quais, nas minhas horas, tive o gosto e a honra de traduzir e apresentar no espaço português.





ACHADO ENTRE OS PAPÉIS DE FAMÍLIA


Sonhei tanto, tanto que já nem sequer aqui estou.
Não me façam mais perguntas, não me atormentem mais.
Não me acompanhem neste meu calvário.

Não me é dado explicar quais as ordens que tenho.
Nem mesmo me assiste o direito de pensar nisso,
Há muito tempo já que me levanto e parto.

Há uma permissão da morte, e ei-la que chega.
Na curva da rua que vai dar à noite é que a espero.
O mar vai estar de novo nos últimos terraços.
Um candeeiro de novo aceso sente o desejo das trevas.
Um passo no empedrado. A sombra dele precede-o
E deita-se sobre mim, a cabeça no meu coração.
Ali está ele.

Sempre de chapéu redondo, sempre de saco na mão
Tal como era no dia em que regressou de Itália.
Já lhe não vejo os olhos. Já me não fala.

Eis que rolo até ele como uma obscura pedra.
Não consigo atravessar a sua sombra.
Portaste-te como devias? E desde então que fizeste?
E porque não subiste?
Todos os dias ia ver se chegavas e não chegaste nunca!

Ele nada diz sobre tudo isto.
Mas tudo nele me diz: lembra-te!

Sobre ele a noite tornou a fechar-se.

                                    
                                                     Léon-Paul Fargue









O LUTO A  ALEGRIA

Os amigos que estão
no seu pé de página
como em caixão florido
pelos tempos futuros
têm de nós o gesto mais perfeito -

um sorriso transido mas mesmo assim
verdadeiro
e muitas mãos para afagar lembranças
e muitos dentes luzindo para criar o verão
e muitos olhos  em repouso para dizer   que é tarde

e muitos gritos para dizer que é cedo
e que é a hora de acordar
e de dormir porventura
e de bailar entre as árvores
e de correr entre as sombras
e a luz que elas provocam
e de sofrer um pouco
um pouco ainda
como crianças sem remorso  sem dor  sem amargura
de novo em viagem

sem efígie sonhada 
e já desaparecida.  
        
                                                            Jules Morot










           MAPA  ASTRAL

Observa quanta face te rodear. Contudo
em nenhum rosto colhas ódio ou ilusão.
Na tarde, voa alto o pássaro mais humilde
Se por si mesmo voa, com ou sem madrugadas.

Não faças dos teus olhos a máquina mortífera
sobre o hoje e o ontem, o aqui e o acolá
ou das mãos uma sombra para o destino entre
as falésias e a bruma da hora iniciadora
vazia de sinais nos parques onde o Verão
tranquilamente cessa, se enovela ou revive.
Recorda com humildade as árvores junto ao rio
recorda uma frugal refeição numa viagem
Há em todos os tempos coisas que vão nascendo
sem que sejam precisos a alegria e o pranto.

É bem verdade que a dor nos pode oferecer tudo
se o campo inutilmente se cobre de ramagens negras
Mas a ausência não fere, se nas praias indivisas
ou sobre os meridianos as ondas se levantam.
É quando o mar se afasta que sentimos por vezes
uma interrogação, mesmo uma breve dúvida.

Que mais saberemos nós, pobres irmãos do vento
do grande reino ausentes sem que a mágoa nos mate
Que poderemos nós, buscando para sempre
a terra sem promessas da manhã derradeira?

         
                                                       Pierre Grenier









A VIAGEM  DERRADEIRA

…E partirei. E ficarão os pássaros
cantando;
e ficará o meu quintal, com a sua árvore verde
mais o seu poço branco.

O céu, todas as tardes, estará azul e calmo;
e tocarão, como esta tarde estão tocando
os sinos do campanário.

Irão morrendo aqueles que me amaram;
e a cada ano se fará novo o meu povoado;
e no tal recanto do meu quintal florido e calado
o meu espírito vagueará,  nostálgico…

Eu partirei; e ficarei só, sem lar, sem a árvore
verde, sem o poço branco
sem o céu azul e calmo…

E ficarão os pássaros, cantando.

                                                             Juan Ramón Jiménez







Fotografias de Henri Cartier Bresson

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