(imagem obtida aqui)
Caros
confrades e amigos
Hoje é dia de Corpo de Deus. Data significativa para crentes, dia de feriado
para todos. Em suma, geralmente dia de repouso e de alegria. E a alegria,
mormente a alegria de viver é algo de fundamental, diria mesmo
fundacional.
Mas
há dias em que a alegria se nos gela de repente nos minutos. E ficamos quase
inermes. O coração e a vontade param por segundos e quando recomeçam a vibrar é
com uma agulha enterrada.
Depois, como me disse em mail uma querida confrade amiga, quando ontem
lhe escrevi a narrar coisas tristes, “E passados dias reentramos na
normalidade, que se pode fazer?”. Porque, bem ou mal, a vida continua. Mas
desta vez foram duas as agulhas: uma ao princípio do dia, outra quando este
findava.
Para
mim e para muitos ontem foi um dia amargo.
(imagem obtida aqui)
Como o
confrade talvez tenha ouvido nos noticiários, morreram no deserto do Sahara, no
périplo de Marrocos, dois moços irmãos. Andavam, desde pequenitos, sempre
juntos, andavam juntos sempre que podiam agora que já eram homens. E juntos
morreram, quando numa prova automobilística atravessavam as imensidões daquele
norte de África.
De
pequenos os conheci, em grandes os via frequentemente: eram os filhos do meu
querido amigo e mecânico António Ramos, a quem devo tantas amabilidades e
desvelos de pessoa honrada e profissional sem jaça.
O
mais velho deixa um casalinho. Filhos que irão crescer sem pai. Às vezes a vida
é bem dura – e creio que não é preciso dizer mais nada.
Quase
ao findar a jornada, outra notícia amarga me atingiu. Chegara ao fim dos seus
dias o grande Ray Bradbury. E nem o/a confrade imagina o que este homem, este
escritor que modificou totalmente o panorama imaginativo da literatura
americana, tendo também um enorme relevo na mundial, representou para mim.
(imagem obtida aqui)
Li-o
pela primeira vez há mais de meio século. E desde o primeiro momento ele foi
para mim um símbolo, entre alguns mais (Lovecraft, Régio, Camus, J.Dikckson
Carr), um daqueles cuja arte nos garantia que, como dizia António Maria Lisboa,
mesmo em tempos funestos “Não há razão/para queimar a esperança”. Mestre
do conto e grande poeta da science-fiction, a sua influência no sentir
literário e no pensar a existência sem fronteiras foi enorme e, felizmente,
reconhecida tanto pelos leitores devotados como pelos especialistas e a própria
aparelhagem crítica, que a breve trecho teve, ora com gosto da parte de uns,
ora com inevitabilidade da parte de outros, de o cifrar como um dos grandes
escritores do nosso tempo vivo.
Em
anexo vos ofereço duas obrinhas pictóricas e um texto que em tempos lhe
dediquei.
E
que, se me permitem, ponho sob a égide da partilha: tanto do artista justamente
glorificado, rodeado da sua amada família no momento da morte, como dos dois
moços anónimos, para o vasto mundo, tombados na solidão de um
deserto.
(imagem obtida aqui)
O coração do Mundo
a Ray Bradbury, inventor de corações
Tempos atrás, numa clínica de New Jersey,
uma criança recebeu um coração novo.
O facto não causaria estranheza não fosse
dar-se a circunstância de a criança ser um bebé de tenra idade. Agora, com o
seu coraçãozinho batendo serenamente, a pequenita - pois trata-se de uma menina
- irá pela vida fora.
Esperemos que vá. De acordo com os médicos
que procederam ao transplante a pouca idade da garota favorece o resultado da
operação. Com o seu pequenino coração tiquetaqueando, Philipa enfrentará o
mundo e as suas tristezas e alegrias. Com esse coraçãozinho de empréstimo – que
será todavia muito seu – conhecerá tudo o que uma criança do quotidiano
ocidentalizado usa experimentar: o despertar lento para a vida de relação, o
progressivo descobrir da existência, a surpresa das brincadeiras e o esforço
controlado do trabalho. Conhecerá outras crianças, outras vidas: outros
corações. Conhecerá um dia o amor e a amargura – embora, prosaicos que todos somos,
bem saibamos que não é no coração que residem os sentimentos. Mas, como referia
Richard Lewinson (esse mesmo, o excelente historiador francês que,
curiosamente, foi também o criador de uma das figuras mais conhecidas do
moderno relato policiário: o Tenente
Columbo) “prestemos homenagem à fantasia
secular de situar no coração a morada desse mar que sempre agitou a humanidade”.
Nicolau Saião, Viagem a Alderbaran – a Bradbury, (Col. António Garção)
A possibilidade de receber em termos o
coração estranho deveu-se aos melhoramentos introduzidos em certo mecanismo de
apoio por um cientista-inventor. Aliás, de acordo com as notícias que
diariamente se cruzam sobre os diversos sectores da actividade humana, os
inventos estão a conhecer ultimamente como que uma idade de ouro. Os
inventores, esses curiosos Ulisses da ciência aplicada, se desde sempre foram
apreciados pela lenda e pela literatura de imaginação só nos últimos tempos
estão recebendo uma atenção profunda: na Bélgica, em França, nas Américas, em
Espanha e até nos actuais países de Leste, a acção desses homens granjeia o
apoio e o apreço das entidades científicas e mesmo das empresas com alta
capacidade de manejo. No fundo, é delas o benefício; e, finalmente, de todos
nós. Porque a existência é uma componente rica e articulada, nos melhores
casos, entre o espiritual e o material.
Jules Verne, que aliás morreu desiludido com
o excessivo materialismo do seu tempo e o que este tinha por ciência
definitiva, disse-o com propriedade, tal como o têm feito outros autores que
equacionaram e debateram nos seus escritos esses temas candentes. A talhe de foice: Ray Bradbury ,
Fritz Leiber , Clifford Simak ,
Isaac Asimov ...
Mas em Portugal (como noutros lugares…) não
é, com efeito, assim. Já vai sendo conhecido nos diversos países que um inventor,
cá no jardim, passa as passas-do-Algarve para conseguir afirmar-se. Dispondo de
um poder de imaginação relativamente limitado, formado frequentemente por
homens públicos mazorros ou de espírito bronco e politicão, o Estado português
não tem tido pelos inventores portugueses o desvelo que estes merecem. Aqui há
dias um destes homens teve ocasião de relatar na televisão a sua odisseia de
pessoa criativa num país onde a imaginação é por vezes mais bem vista a
inventar aldrabices mediáticas, cenários políticos e outras baldrocas.
Sabia o leitor que muitos dos inventos
mais úteis e comuns que aí andam p’lo mundo foram congeminados por inventores portugueses?
Nicolau Saião, Lá fora
está-se melhor – a Ray Bradbury, (Col. Maria Estela Guedes)
Pois é verdade. O que acontece é que
tiveram de ir para as franças e araganças dar seguimento prático às suas
invenções. Cá no portugalinho tinham de se quedar como se nada tivessem
descoberto. Nem facilidades para registarem os seus trabalhos lhes eram dadas!
Pelo que, fique então sabendo: se acaso
inventar algo e for lusitano, perca um bocado as ilusões. E encha-se de
paciência…
E se quiser ter o quotidiano facilitado,
dedique-se antes – será muito apreciado pela doce gente politiqueira que vive
um pouco em todo o lado – a artilhar uma nova maneira de fazer o Zé Povinho
esportular as lecas.
1 comentário:
A notícia da morte do Ray Bradbury foi um choque; como é que ele pode ser mortal? Foi coisa que nunca me tinha ocorrido, era eterno como os seus escritos que acenderam na minha infância neurónios que ainda continuam acesos
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