sábado, 2 de março de 2013

PAPA RENUNCIA AO MUNDO CONTEMPORÂNEO

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 A renúncia de Bento XVI é o primeiro caso de um papa que deixa o cargo em vida em 600 anos. Os motivos são muitos, nem por isso insondáveis.

 
O papa é um homem velho, que sofre o desgaste da velhice. Mas isso mesmo seria motivo para continuar no cargo, pois o cristianismo acredita no sofrimento como expiação do pecado original e dos pecados subsidiários. A renúncia do papa se deve, na verdade, a um grande fracasso teológico, político, institucional, moral e cultural.

Em termos teológicos, o papa perdeu a batalha contra a contemporaneidade. Sua concepção da Igreja era essencialmente anticonciliar, ou seja, contrária às principais conquistas e consequências do Concílio Vaticano II, que tentou, “too little and too late”, adequar a Igreja ao mundo contemporâneo nos confusos e agitados anos 1960.

Entre inúmeras outras coisas, a Igreja precisava, então, dar uma resposta ao seu silêncio criminoso durante o nazismo, precisava dar uma resposta aos avanços científicos e sociais e precisava dar uma resposta às tensões da Guerra Fria, incluindo a emergência da contracultura.

Seu histórico antissemitismo foi “resolvido” pela “absolvição” do povo judeu do crime de deicídio, o assassinato de Deus, ou Cristo. Sua histórica resistência à ciência moderna, cujo caso exemplar é a perseguição a um dos maiores cientistas da história, Galileu, foi “resolvida” por bulas e declarações em que se tentava, de modo necessariamente inepto, juntar água benta e óleo de motor, por exemplo, “adequando” o darwinismo ao criacionismo bíblico, pela aceitação de que o darwinismo dava conta da construção dos corpos dos seres viventes ao longo da história da vida, mas não do surgimento da consciência, resultado da “injeção” da alma no homem por ato divino (resta saber em que geração do continuum de antropoides: porque, então, ou houve um antropoide que recebeu uma alma humana, ou houve humanos antes de receber tal alma). Sua resposta à efervescência política da Guerra Fria e à ebulição cultural da contracultura foi tentar se aproximar de correntes “alternativas”, como a Teologia da Libertação, além de “modernizar” os ritos, com a extinção do latim na missa e a mudança da posição do celebrante, que tradicionalmente ficava de costas para os fiéis e de frente para a imagem de Cristo.

Havia também o grave problema das “vocações”, o fato de que cada vez menos jovens entravam para a carreira eclesiástica. Aos seminários vazios se somava o deslocamento para o Terceiro Mundo da massa de fiéis, em detrimento do centro histórico europeu e ocidental da Igreja.

Os resultados do Concílio não foram espetaculares. Muitos fiéis tradicionais se ressentiram da “modernização” dos ritos, que, por outro lado, não atraíram novos fiéis em números significativos. Enfim, poucos se convenceram da “modernização” conciliar da Igreja, principalmente em função da reação imediata que representou o papado de Paulo VI e, depois, o de João Paulo II.

João Paulo II, tendo o cardeal Ratzinger, futuro Bento XVI, como eminência parda, tentaria reverter ou reequilibrar o pêndulo, anulando algumas decisões centrais do Concílio, como a aceitação da Teologia da Libertação, além de buscar uma saída para o desafio da modernidade pelo reforço ao dogmatismo, promovendo a mais do que retrógrada Opus Dei e condenando sistematicamente o “culto materialista da modernidade”, aí incluídas a ciência e a tecnologia, que seriam boas se não vistas como solução para o “problema humano”, que só poderia ser a própria Igreja. Também reverteu certa tolerância geral apontada pelo Concílio, proibindo o uso de contraceptivos em plena epidemia da AIDS e reafirmando o celibato apesar das primeiras denúncias da epidemia de pedofilia clerical, além de confirmar de modo puro e duro a condenação do divórcio (e a exclusão dos divorciados do “rebanho”), do homossexualismo e otras cositas más. João Paulo II tentaria distrair o público de seu reacionarismo anticonciliar através do uso eficaz da mídia, incluindo sua imagem de simpático globetrotter globalizado, sempre entrando e saindo sorridente de um avião em algum lugar remoto do mundo, “levando a Igreja onde o povo está”. Além disso, contraditoriamente, tentou promover o ecumenismo, aproximando sua Igreja neodogmática de outras denominações. Bento XVI reverteria também esta tendência, aumentando ainda mais o isolamento da Igreja.

A verdadeira epidemia mundial de pedofilia clerical, cuja real dimensão veio afinal à tona no novo papado, não contribuiria para melhorar as coisas, assim como não contribuiu a atitude ambivalente de Bento XVI, de pedir “perdão” pelo crime monstruoso e por seu acobertamento sistemático pela Igreja, mas se recusar a tomar ou ser inepto para implementar qualquer medida efetiva a fim de atacar de modo consistente esse “problema”. 
 
O mesmo pode ser dito em relação a todos os demais problemas da Igreja, incluindo os originados de sua condição de verdadeira corte palaciana. A Cúria Romana deveria ler Shakespeare. Mas apenas se fosse para concluir que isso não funciona. Não será por acaso que a história deu cabo de todas as demais cortes europeias.


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A contradição fundamental da Igreja está no fato de ela lidar com “questões eternas”, que são imutáveis, e se traduzem em dogmas, enquanto os fiéis lidam com as questões do mundo contemporâneo. A saída do Concílio Vaticano II foi tentar aproximar a Igreja da contemporaneidade. A de João Paulo II, seguida e reforçada por Bento XVII, foi o caminho do “menos, mas melhor”. Se a Igreja não tem mais poder nem influência para determinar as coisas do mundo, como teve durante a Idade Média, que o mundo fique entregue a si mesmo, enquanto a Igreja, como um castelo de resistentes cercado por bárbaros, oferece proteção aos que quiserem ser protegidos.

Trata-se, de fato, de um problema insolúvel. Se a Igreja se adaptar demais ao mundo moderno, deixa de ser a Igreja para ser outra coisa, mais uma oferta no grande supermercado das crenças à la carte. Se não se adaptar, será cada vez mais irrelevante, um castelo cada vez mais isolado para cada vez menos peregrinos perdidos.


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O cristianismo surgiu como uma pequena seita do judaísmo, em torno do ano 100 d. C. Com as reformas teológicas de Paulo, que abandonaram muitos dos principais preceitos judaicos, a nova seita, recusada pelos próprios judeus, passou a se disseminar pelo mundo greco-romano, até se tornar religião oficial do Império Romano no século IV. Com o fim do império, virtualmente o substituiu como poder dominante na Europa ao longo da Idade Média. Sua perda de poder e influência começa na Era Moderna, quando, ao mesmo tempo, surgem os Estados nacionais e a própria modernidade, marcada por um novo humanismo laico, pelo racionalismo, pelo cientificismo e pelas liberdades religiosa e civis.

A decadência da Igreja no século XVI já era tão acentuada que permitiu ou ensejou o surgimento do protestantismo, quando a Igreja, em poucos anos, perdeu metade da Europa. Sua reação, a Contra-Reforma, deu algum sobrefôlego ao catolicismo como poder político, ideológico e cultural, mas isso não poderia perdurar, porque um poder muito maior, o capitalismo, principalmente a partir da Revolução Industrial iniciada no século XVIII, somada às modernas ideias de liberdades civis nascidas da Revolução Francesa e da Constituição americana, mostrou-se irredutível à velha visão de mundo romano-medieval de que a Igreja Católica Apostólica Romana é a renitente herdeira e guardiã.

Neste contexto histórico, a Igreja chegou à beira de ser extinta, quando Napoleão dominava a Europa e precisava decidir se mantinha as diretrizes e decisões da Revolução Francesa (que a proibira e colocara na ilegalidade na França, por suas ligações genéticas com o Antigo Regime), ou se mantinha a Igreja como uma instituição fragilizada, acuada e dócil, mas ainda influente e internacional, a serviço de seus desejos imperiais. Napoleão fez a segunda opção, e a Igreja foi salva. Já o papado esteve à beira da extinção quando da unificação italiana em 1870.

O centro da Itália, incluindo Roma, constituía os Estados Pontifícios
desde o século VIII. Quando, em 1870, as tropas lideradas pelo rei Vitor Emanuel entraram em Roma, culminando e encerrando as lutas pela unificação da Itália, os Estados Pontifícios foram necessariamente extintos e incorporados ao novo estado peninsular. Ao papa foi então oferecido um bairro da agora nova capital italiana, o Vaticano, que manteria sua independência, além de uma bela indenização. Pio IX, porém, recusou tudo. Inclusive reconhecer a unificação da Itália e todo o novo statu quo, passando a se considerar um prisioneiro do poder secular e criando a "questão romana".

A “questão” se arrastaria pelos papados seguintes, com os papas vivendo orgulhosamengte autoencarcerados no Vaticano até 1929,
quando Pio XI afinal assina com Mussolini o Tratado de Latrão, pelo qual a Igreja renunciava oficialmente aos seus antigos territórios, mas ganhava, em troca, o status de Estado-sem-territórios (além de vultosas indenizações). Com a condição, naturalmente, de ser dócil e amigável com o fascismo, o que não seria difícil, dadas as proximidades entre as duas visões de mundo antimodernistas. Este é o motivo de a Igreja ser hoje esse estranho híbrido, ao mesmo tempo uma instituição religiosa e um “Estado”, o único Estado sem nação da história. Em todo caso, por acordos não exatamente pios com Napoleão e Mussolini, a Igreja e o papado foram modernamente salvos duas vezes da extinção, para em vez de sair do mundo e entrar na história, manter-se no mundo para tentar, de qualquer jeito, adentrar o futuro.

A verdadeira pergunta, então, é: quem, fora a própria Igreja, precisa do papado? E quem, fora a própria Igreja, precisa de uma instituição religiosa centralizada na decadente Europa, relíquia histórica do Império Romano cujas instituições herdou ou substituiu a partir do século V, tornando-se uma espécie de império clerical, organizado em subdivisões geográficas como bispados e paróquias, a serem ocupadas por representantes do “imperador” romano eclesiástico? Que ela, enfim, mantenha seus homens em suas longas vestes medievais, seus ritos arcaicos e suas crenças ainda mais arcaicas, enquanto o mundo contemporâneo segue seu curso baseado nas capacidades humanas, e não nas expectativas dos deuses, desde que não possa mais ser um porto seguro para pedófilos em série e crimes financeiros igualmente em série, que periodicamente pipocam e desaparecem na imprensa mundial.

Nada pode fazer mais sentido do que a Igreja se tornar cada vez mais irrelevante. A renúncia do papa não tem, enfim, qualquer importância. E esta é a verdadeira grande notícia.

5 comentários:

Anónimo disse...

Muito bom artigo. Chapelada e obrigado.

ns

Anónimo disse...

"suas crenças ainda mais arcaicas". Quer especificar?

Luís Dolhnikoff disse...

"Que ela, enfim, mantenha seus ritos arcaicos e suas crenças ainda mais arcaicas". Os ritos da Igreja foram desenvolvidos ao longo da Idade Média, muitas vezes em sincretismo com hábitos germânicos, como o de se ajoelhar perante o chefe. Já as crenças fundamentais são dos século II a IV, incluindo a ressureição de Cristo e a homoússia, a identidade essencial entre Deus e Cristo, decretada no séculoo IV (e até então debatida ou questionada).

L.D.

Anónimo disse...

Bom, pensava que a ressurreição de Cristo estava consignada nos textos de Paulo, redigidos por volta do ano 50 d.C., e nos evangelhos, redigidos até ao ano 90. O "homousios" é mais tardio, de facto, mas apenas quer traduzir o que está em João 10:30. Mas concordo que há práticas (não crenças) que surgiram na Idade Média. Mas do mesmo modo há outras práticas que surgiram no século XX, donde nem todas são arcaicas. Mas a dúvida pode surgir: será que a matemática é arcaica apenas por se saber há milhares de anos que 2+2=4? Ou que a astronomia é arcaica apenas por se saber que o Sol é maior do que a Terra há milhares de anos? Que lhe parece?

Luís Dolhnikoff disse...

Sim, mas nada do que está em Paulo ou João ou qualquer outo texto era doutrina até o século IV, até o Concílio de Nicéia, quando se definiram os próprios textos que formariam o Novo Testamento, expurgando-se outros. E só a partir daí conceitos como a homoússia foram oficializados.Mesmo a ressurreição de Cristo era até então motivo de debate entre várias correntes, uma das razões, aliás, de Constantino reunir o Concílio. Quanto ao arcaísmo, refiro-me à denotação grega de arché, original. O que foi definido em Niceia, por exemplo, é o que há de mais arcaico, de mais original, não no sentifo da originalidade, mas da antecedência, entre os ritos da Igreja, que, enquanto tal, foi na prática instituída nesse Concílio.